Movimento Letras alerta que ler e escrever são ferramentas fundamentais para transformar a sociedade e conquistar a libertação total do país. Orador destaca a importância da memória histórica e da educação. Participantes alertam para a falta de bibliotecas e de investimento na preservação da memória nacional.
Para assinalar o Dia Mundial da Literacia, o Movimento Letras realizou ontem de manhã (08.09), na Fundação Oriente, um debate sobre o tema “Antes e depois do 25 de Abril”. O evento destacou a leitura e a escrita como ferramentas essenciais para transformar a sociedade e dar continuidade à luta pela libertação total de Timor-Leste.
Na abertura, o coordenador do Movimento Letras, Basílio Sanches Sávio, sublinhou que o hino nacional timorense reflete o espírito de resistência contra o colonialismo e o imperialismo. Defendeu ainda que as novas gerações devem manter viva essa herança através de ações concretas no quotidiano, rumo à libertação completa.
“No passado, Nicolau Lobato liderou o povo maubere, que, apesar de pequeno e com um território reduzido, conseguiu lutar pela libertação total do país e pela justiça social”, recordou Basílio Sávio.
O coordenador frisou que compreender a história é fundamental para reforçar a consciência nacional. “Antes, os guerrilheiros pegaram nas armas. Nós, as novas gerações, precisamos de pegar nos livros, nas canetas e nos cadernos para ler e escrever. Esta é a base para continuar a nossa luta”, afirmou.
Segundo Basílio Sávio, o festival teve também um caráter político: não se trata apenas de ensinar a ler e escrever, mas de formar cidadãos com consciência crítica. “Há muitas pessoas que sabem ler e escrever, mas não sabem lidar com a realidade do país. Para as novas gerações, a leitura dá-nos espírito e consciência política, permitindo usar a sabedoria, o pensamento crítico e a análise como armas poderosas para a libertação total”, explicou.
O coordenador acrescentou que a literacia é também um instrumento de afirmação da identidade nacional. “Se não lermos, não conhecemos a nossa própria história. E, nesse caso, quem poderá definir o nosso futuro? Se outros povos lerem a nossa história, serão eles que a vão conhecer melhor do que nós. A literacia ensina-nos a mostrar ao mundo que esta é a identidade do povo maubere, para não nos desviarmos da nossa realidade social, cultural, económica e política”, concluiu Basílio Sávio.
Apesar do destaque à educação e à literatura, os participantes alertaram para a falta de bibliotecas e de investimento na preservação da memória nacional, apontando esses fatores como essenciais para que a leitura, a escrita e a história continuem a ser instrumentos de libertação em Timor-Leste.
Educação e Literatura como armas fundamentais para transformar o mundo
O orador do evento, Roque Rodrigues, destacou que a educação e a literatura são ferramentas essenciais para transformar o mundo e fortalecer a identidade do povo timorense. “Mulheres e homens, meninas e meninos, percebam que ler e estudar é importante para transformar o mundo”, afirmou.
Recordando a figura de Nicolau Lobato, líder da resistência timorense, Roque Rodrigues sublinhou a sua formação escolar em Soibada, Manatuto, e em Dare, Díli. “Foi aluno de escolas católicas. Nicolau era cristão fervoroso, com amor ao próximo, à liberdade e à pátria. Morreu aos 32 anos, sacrificando-se pelo nosso país. Se fosse vivo, teria 79 anos”, lembrou. Lobato, primeiro Primeiro-Ministro de Timor-Leste, faleceu a 31 de dezembro de 1978, durante a resistência contra os militares indonésios, e os seus restos mortais ainda não foram encontrados.
O orador salientou o peso humano da reconstrução da independência timorense. “Segundo fontes internacionais, morreram mais de 200 mil pessoas. A Igreja Católica estimou 320 mil mortos. Foi um genocídio. Cada família timorense perdeu, pelo menos, um familiar na luta pela libertação nacional. O sangue e o sofrimento dessas irmãs e irmãos fertilizaram a vitória e deram-nos força para chegar até aqui”, afirmou.
Roque Rodrigues destacou ainda o papel da educação, da literatura e das escolas católicas na construção do nacionalismo timorense, assim como a importância da língua portuguesa.
“A religião católica e a língua portuguesa foram trazidas de fora, mas enraizaram-se em Timor e tornaram-se parte da nossa identidade. A nossa alma também se expressou nas letras e na literatura da resistência. Um grande poeta, Francisco Borja da Costa, morreu muito jovem, produzindo pouco, mas de qualidade. Porém, o inimigo não tolerava pessoas qualificadas e cultura; matou essas pessoas e tentou destruir a nossa cultura”, recordou.
Durante a apresentação, Roque Rodrigues fez referência ao pedagogo brasileiro Paulo Freire, sublinhando que a literacia não é apenas saber ler e escrever. “Paulo Freire dizia que não basta ler e escrever; é preciso interpretar o mundo. Os nossos analfabetos, que não sabiam juntar letras, carregaram a pátria aos ombros. Se não fossem eles, hoje seríamos indonésios”, afirmou.
Falando sobre a história contemporânea da Ásia e de Timor-Leste após a Segunda Guerra Mundial, Roque Rodrigues lembrou que vários países asiáticos conquistaram a independência: Indonésia (agosto de 1945), Vietname (setembro de 1945), Índia e Paquistão (1947), Birmânia/Myanmar (1948) e China (1949). “Os jovens precisam conhecer estas datas para compreender que a descolonização foi um movimento mundial que também inspirou a luta do povo timorense”, sublinhou.
O orador alertou ainda para os riscos do uso excessivo da tecnologia entre os jovens, que pode afastá-los das tradições orais e da cultura. “Hoje, todos agarram no smartphone e já não ouvem histórias. Isso é perigoso, é a desumanização da sociedade. Precisamos de controlar o tempo e valorizar as nossas manifestações culturais. No meu tempo, não havia internet nem smartphones. À noite, usávamos petromax — se eu perguntar aos jovens o que é, ninguém sabe. Era um canteiro com petróleo, colocávamos uma esteira, estudávamos e ouvíamos os mais velhos contar histórias, lendas, contos e tradições. Era assim que aprendíamos”, lembrou.
Roque Rodrigues incentivou as novas gerações a pesquisarem episódios da história timorense, como a revolta de Watulari e Uatocarabau, em Viqueque, em 1959, durante o regime colonial português, quando líderes foram mortos ou deportados. “É preciso estudar para perceber o que aconteceu e honrar a memória de quem sacrificou a vida pela liberdade”, afirmou.
O orador destacou também o papel dos movimentos de libertação africanos, liderados por Amílcar Cabral, na Guiné-Bissau, e Eduardo Mondlane, em Moçambique, contra o colonialismo português. “Estes exemplos mostram que o fascismo não caiu com festas, mas com luta, sangue e sacrifício. Os jovens timorenses devem estudar profundamente a história para não repetir erros do passado e fortalecer a democracia no presente”, concluiu.
Jovens afastam-se dos livros e da história de Timor-Leste, alertam participantes
Para Natércia Maria Lobato, participante do evento e diretora da Escola Shine, a iniciativa do Movimento Letras de promover um festival literário para assinalar o Dia Mundial da Literacia é essencial para incentivar a leitura e formar as novas gerações.
“Quando lemos muito, sabemos muito. Ler um livro é ler o mundo. Através da história, podemos inspirar-nos para servir o nosso país, tal como os nossos antepassados que lutaram, se sacrificaram e foram torturados”, afirmou.
O estudante Idóneo de Carvalho, da Universidade Católica Timorense (UCT), destacou a importância da literacia para compreender a história nacional, mas lamentou a dificuldade de acesso a referências escritas sobre Timor-Leste.
“A história é uma base fundamental para os jovens. Através dela, podemos aprender com os nossos antepassados e com os heróis da pátria que lutaram e morreram pela libertação”, disse.
Natércia lamentou o facto de muitos jovens desconhecerem a história do país, desconhecerem a tecnologia como um dos fatores que os afasta dos livros. “Muita gente prefere estar no telemóvel em vez de pegar num livro. Pessoalmente, também faço isso: quando os meus dedos estão em cima do telemóvel durante 24 horas, não sinto sono, mas quando pego num livro, depois de cinco minutos, parece que é o livro que me lê”, comentou.
O estudante acrescentou que o sistema educativo ainda não valoriza suficientemente o ensino da história nacional. “Alguns professores conhecem a história, mas o currículo não aborda o tema de forma aprofundada. Por isso, é difícil aprender a história de Timor-Leste nas aulas”, explicou Idóneo.
Natércia alertou ainda para a falta de investimento na educação e para a ausência de uma biblioteca nacional. “Não existe uma biblioteca nacional para guardar livros sobre a história de Timor-Leste, onde as pessoas possam consultar referências e conhecer a história do país”, frisou.
Segundo Idóneo, a falta de bibliotecas e de materiais didáticos limita o acesso dos jovens à história do país. “A biblioteca é a casa dos livros. Os livros são os professores do conhecimento. Mas se uma escola não tem biblioteca, como podemos aprender? Muitas vezes, encontro apenas poucos livros sobre Timor-Leste, enquanto predominam obras estrangeiras”, criticou.
Natércia relatou ainda que recorre à narrativa oral da família para conhecer a história da resistência. “Algumas vezes pedi ao meu pai para contar experiências vividas durante o período da resistência. Assim, posso conhecer relatos em primeira mão e depois transmitir aos meus alunos. Estas crianças continuam a relembrar, estudar e procurar aprender a história do país para que um dia possam ser bons líderes”, acrescentou.
Idóneo defendeu que é fundamental transformar a história oral em livros, mas lamentou a falta de investimento. “Ainda não existe ninguém que transforme a história oral em escrita. O Governo e as universidades deviam dar mais importância à educação, para formar pessoas qualificadas que possam produzir livros sobre a nossa história”, concluiu.


