Conhecer o corpo: meninas timorenses sofrem com falta de educação menstrual

as mulheres, além de produtos, como pensos higiénicos e tampões femininos, têm acesso a aplicações móveis com informações relativas ao ciclo menstrual. Foto: Diligente

Muitas raparigas timorenses são apanhadas de surpresa pela primeira menstruação. A falta de conhecimento para abordar um assunto que ainda é tabu na sociedade timorense é agravada pelas condições económicas e pela fraca preparação de escolas ou de espaços domésticos, públicos ou comerciais que garantam o acesso a cuidados e a produtos de higiene feminina.

Em Timor-Leste, as estudantes do ensino básico prestes a entrar na adolescência não estão preparadas para lidar com a primeira menstruação. Do choque inicial, quando percebem que algo está a mudar no corpo, ao medo de enfrentar a sociedade, passando por crenças e mitos, o período feminino é moldado pela falta de informação, tanto em ambiente escolar, como familiar.

Além disso, a escassez de recursos também tem impacto no modo como as mulheres encaram o ciclo menstrual. Aquilo que deveria ser natural e parte do dia-a-dia de milhares de mulheres em Timor-Leste é, em muitos casos, uma rotina silenciosa, sofrida e, mais grave ainda, insegura em termos de saúde.

Nas escolas, no Ensino Básico, a abordagem dos sistemas menstrual e reprodutor fica-se pelas disciplinas de Ciências Naturais ou Estudo do Meio, explicando, de uma forma genérica, a existência de seres vivos e a sua relação com o meio, com ciclos, e com o corpo, sem destacar especificamente o assunto.

Beti Pinto, de 14 anos, aluna do Ensino Básico Central de Hera, recorda os momentos iniciais da sua primeira menstruação, também conhecida como ‘menarca’, quando ainda frequentava o oitavo ano. “Antes disso, não sabia nada sobre menstruação. Na escola primária, nunca falámos sobre isso”, confessou.

Em casa, ainda assim, diz ter conseguido “aprender algumas coisas”. A irmã mais velha explicou-lhe que o período “aparece todos os meses nas mulheres e que normalmente dura à volta de cinco dias”.

“Já a minha mãe alertou-me para não lavar o cabelo durante o período, para não ficar doente”, conta a jovem, confessando que não entrou em pânico quando começou a menstruar. “Lembro-me de ver a minha irmã e de saber que ela estava com o período”, recorda.

A estudante reforça a ideia de ser dada importância à educação menstrual desde cedo. “É fundamental que todas as adolescentes saibam e compreendam o assunto, para que estejam bem preparadas no momento em que surge a primeira menstruação”, sublinha a jovem.

Mariana (nome fictício), de 26 anos, também recorda a sua história e um episódio “assustador”, vivido durante o ensino básico, quando tinha apenas oito anos. Nesse momento, pela primeira vez, viu uma colega com a saia ensanguentada.

“Fiquei em pânico ao vê-la com a saia cheia de sangue. Pensava que ela tinha uma ferida na perna. Então, pedi a uma professora que me explicasse o que estava a acontecer. No entanto, ela limitou-se a responder que eu iria perceber, quando tivesse uma certa idade. A resposta deixou-me ainda mais confusa”.

Ao chegar a casa, Mariana procurou esclarecimentos junto da mãe, que lhe deu uma resposta semelhante à da educadora. “A mãe disse-me que era uma doença das mulheres e que eu também a iria sentir e compreender quando me tornasse adulta”, afirma.

A explicação da mãe, referindo-se à menstruação como “uma doença das mulheres”, mostra também a forma como a sociedade timorense encara o assunto. Em tétum, o conceito de “moras feto” (literalmente, doença das mulheres) é usado pelas pessoas para se referirem ao ciclo menstrual.

A já adolescente Mariana ainda vivia na ignorância e num mar de dúvidas desde aquele episódio na escola, até chegar aos 14 anos. “Senti, na altura, dores nas costas e não percebia o que se estava a passar. Pouco depois, passei em frente à minha tia, que reparou numas manchas de sangue nas minhas calças. Virei-me e fiquei assustada ao vê-las. Gritei: ‘que ferida é esta?’. Só aí é que soube o que era o ciclo menstrual”, recorda.

Questionada sobre a utilização de pensos higiénicos, Mariana conta que aprendeu com a prima. “Vi-a a usar. Chegou a pedir-me para ir comprar em quiosques. Fui aprendendo um pouco sobre higienização durante o período menstrual, sobretudo como usar pensos higiénicos. Na verdade, nos primeiros tempos, estava desconfortável com essa nova rotina”, desabafa Mariana.

Fernanda da Costa, mãe de cinco filhos, conta que, na sua juventude, a mãe não lhe transmitiu bem a informação sobre o ciclo menstrual. “Antigamente, muitas mães não iam às aulas. Por isso, não sabiam como informar as suas filhas sobre o assunto. Limitavam-se a adverti-las para a importância de não lavar o cabelo durante a menstruação. Caso o fizessem, poderiam adoecer. Então, segui o conselho à risca”, assegura.

Fernanda revela ainda que, ao contrário da sua progenitora, conseguiu explicar o assunto à sua filha de 11 anos. “Sabia que, se lhe explicasse, ela iria estar preparada para algo que, mais cedo ou mais tarde, iria acontecer. Não queria que ela entrasse em pânico, como aconteceu comigo”, afirmou.

Entre mito e ciência – o período menstrual

Para Maria Regina, médica de Medicina Geral, a menstruação é um processo natural, que acontece todos os meses no corpo de uma mulher. “Ocorre quando o sangue sai do corpo da mulher, como consequência da ‘limpeza’ do revestimento do útero, sempre que não há fecundação (gravidez). Este fenómeno marca o início da puberdade nas meninas”, esclarece.

Em relação à idade, a médica sublinha que a menarca varia de pessoa para pessoa. “Normalmente ocorre entre os 10 e os 15 anos, mas a maioria das mulheres costuma menstruar por volta dos 12. Depende de fatores genéticos, da alimentação, da saúde e do ambiente”, assegura.

Em relação às crenças de evitar lavar o cabelo ou de tomar banho com a água fria durante o período, Maria Regina é clara: “Isso não é verdade. A ciência não diz que há problema em tomar banho normalmente durante o período. Aliás, isso ajuda a aliviar as dores, a melhorar o humor e a evitar infeções”.

Pobreza Menstrual – o papel das organizações internacionais

O conceito de Pobreza Menstrual (Period Poverty, em inglês), definido como a falta de recursos para uma higiene menstrual segura e digna, tem sido associado a países em desenvolvimento e com economias frágeis. Organizações, como a WaterAid (https://www.wateraid.org) e Water for Women (https://www.waterforwomenfund.org/en/index.aspx) têm desenvolvido projetos de parceria com outros organismos internacionais em torno da pobreza menstrual, principalmente em países carenciados.

Um artigo publicado em 2024 pela UNICEF, com o nome “Promoting menstrual hygiene management through provision of toilets” (em português: “Promoção da gestão da higiene menstrual através da disponibilização de casas de banho”), aponta fatores como a falta de acesso a serviços básicos (casas de banho e produtos de higiene, por exemplo) como sendo uma “barreira para a adoção de cuidados de higiene menstrual” nas escolas. Lê-se também no artigo que 46% das escolas em Timor-Leste não tem casas de banho separadas. Significa que “meninas e meninos têm de usar as mesmas casas de banho”.

A dificuldade de acesso a cuidados de higiene menstrual leva muitas adolescentes e mulheres em idade escolar a faltar frequentemente às aulas. Não é o caso de Mariana, que diz nunca ter faltado às aulas “por estar com o período”. “Como tínhamos aulas apenas durante uma parte do dia, de manhã ou de tarde, se me aparecesse o período, colocava um penso higiénico e esperava que as aulas acabassem. Não trocava o penso, nem tratava da minha higiene na escola porque não havia condições”, conta.

Em Manufahi e Liquiçá foi implementado, em 2022, com a ajuda da WaterAid e da Plan International, o WASH – Water, Sanitation, and Hygiene (água, saneamento e higiene, em português). A iniciativa chegou a várias escolas e teve como objetivo promover hábitos de higiene e sensibilizar a população escolar – alunos, professores e funcionários – para as questões relacionadas com o ciclo menstrual.

ME admite falhas e promete programas de educação menstrual

João Mau Pelu, Coordenador do Currículo do Ministério da Educação, confirma que, no ensino básico, não existe uma disciplina que aborde o ciclo menstrual. No entanto, garante que uma equipa no ministério está a preparar a sua inclusão nas matérias de Ciências Naturais e de Educação Física.

“Não vamos criar uma nova disciplina para o assunto, mas consideramos que este conteúdo pode ser incorporado nas disciplinas de Ciências Naturais e de Educação Física, do terceiro ciclo, especialmente do nono ano. Nessa fase, as alunas têm idades compreendidas entre os 14 e os 15 anos, período em que ocorre a transformação corporal de uma criança que entra na adolescência”.

João Mau Pelu reconhece ainda as dificuldades vividas pelas meninas timorenses, dada a falta de conhecimento sobre saúde reprodutiva e as dificuldades em falar do tema, principalmente nas salas de aula.

“Timor-Leste já passou por uma grande transição curricular. Há alguns anos, foi elaborado um manual de Saúde Reprodutiva por uma equipa multidisciplinar, incluindo a Igreja, que foi também ouvida ao longo desse processo e que apresentou algumas contestações. Então, não foi possível avançar, nem melhorar o esboço. Agora, com a reforma curricular, estamos a tomar algumas medidas para garantir que, pelo menos, os estudantes conheçam o seu corpo, de modo a evitar que se ‘assustem’, quando entrarem na puberdade”, sublinhou João Mau Pelu.

Também o Ministério da Saúde, sob a liderança de Élia dos Reis Amaral, já fez saber que o programa do IX Governo Constitucional inclui a saúde escolar, um projeto desenvolvido em parceria com o Ministério da Educação.

“Este programa permite informar os alunos sobre o corpo humano, além de aprenderem coisas sobre os seus órgãos importantes, como os olhos, o nariz e os ouvidos. Também se vai falar do ciclo menstrual”, referiu a ministra, sem entrar em detalhes.

A ministra justificou o facto de alguns alunos e professores ainda não terem participado nas ações de sensibilização com a recente implementação do programa. “Acabámos de dar início. A sua implementação decorre de forma faseada, com especial atenção às zonas consideradas de maior risco. Por isso, começámos pela Escola 10 de Dezembro, em Comoro”, concluiu Élia dos Reis Amaral.

Tabu, mas nem tanto

A demora na inclusão de temas considerados tabu em disciplinas escolares tem levado a que a falta de informação (e a desinformação) condicione o crescimento das gerações mais jovens e as deixe expostas a situações de risco, tanto de exclusão social, como em termos de saúde.

O acesso ao conhecimento científico permite desfazer, aos poucos, pequenos mitos que levam, por exemplo, as pessoas a encararem um ciclo do corpo humano como uma doença (moras feto) e a fazerem disso um tabu, como algo que não se deve mostrar à sociedade.

As mudanças vão surgindo timidamente e percebe-se que, entre hesitações e condicionalismos levantados pela religião ou por questões culturais, há uma tentativa de as entidades governamentais acompanharem as iniciativas e orientações de organismos internacionais.

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