Timor-Leste deu um passo histórico ao lançar o Código Civil traduzido e anotado em tétum, facilitando o acesso ao direito. Mas o artigo que só reconhece o casamento católico continua a excluir cidadãos — e especialistas pedem ação urgente. O Governo compromete-se a rever o documento com responsabilidade, de forma a garantir a sua submissão adequada ao Conselho de Ministros.
O Código Civil de Timor-Leste foi aprovado pela Lei n.º 10/2011, de 14 de setembro, e entrou em vigor em 2012. É fortemente baseado no Código Civil português, com adaptações à realidade timorense. A sua aplicação prática enfrenta desafios, principalmente devido à barreira linguística, já que muitos profissionais do setor jurídico e cidadãos não dominam o português jurídico.
Perante esta situação, o Governo de Timor-Leste lançou, na semana passada, 23 de julho, oficialmente o Código Civil em língua tétum, como parte do plano governamental para aproximar as leis das comunidades, reforçar o acesso à justiça e promover a governação democrática no país.
Especialistas jurídicos consideram que o lançamento foi um momento histórico, pois é a primeira vez que o Código Civil, que antes existia apenas na língua oficial portuguesa, passa a ter uma tradução acessível na língua nacional, o tétum. A tradução para o tétum tem sido amplamente reconhecida como um passo importante para democratizar o acesso ao conhecimento jurídico, permitindo que os operadores da justiça e a população compreendam melhor os conteúdos desta legislação.
No entanto, os analistas jurídicos reforçam que a simples tradução não é suficiente quando o conteúdo da lei continua a apresentar elementos problemáticos, sobretudo o artigo 1475 do Código Civil, que reconhece apenas o casamento católico. Destacam que este é um assunto sobre o qual as organizações de direitos humanos têm exigido alterações, uma vez que exclui outras confissões religiosas, o que contraria o princípio constitucional da igualdade e da liberdade religiosa.
O Código Civil de Timor-Leste é um dos principais instrumentos jurídicos que regulam a vida civil dos cidadãos timorenses, incluindo matérias como: Direito das Pessoas (capacidade jurídica, estado civil), Direito da Família (casamento, divórcio, filiação, adoção), Direito das Sucessões (heranças e testamentos), Direito das Obrigações e Contratos (contratos civis, responsabilidade civil) e Direito das Coisas (propriedade, posse, usufruto).
O defensor público e jurista Sérgio Quintas afirmou que, enquanto profissional que presta assistência jurídica gratuita aos cidadãos, esta iniciativa tem um impacto crucial na promoção de uma justiça mais acessível e eficaz para todos os cidadãos timorenses. “O Código Civil e o Código Penal utilizam muitos termos jurídicos que, às vezes, até quem fala português tem dificuldade em compreender. Muito mais difícil ainda é para os que não dominam essa língua”, declarou.
Afirmou que, com a versão oficial em tétum, os operadores da justiça — juízes, procuradores, advogados e defensores públicos — poderão agora compreender com maior clareza o conteúdo do Código Civil, o que “permitirá uma melhor aplicação da lei e maior qualidade na sua atuação. Não são apenas os profissionais da justiça que vão beneficiar, mas também o público em geral”, frisou.
O defensor lembrou ainda que o Código Civil trata de matérias que regulam o quotidiano das pessoas, como heranças, direito da família, bens móveis e imóveis, divórcios e outras questões civis. “Este código acompanha-nos desde o nascimento até à morte. Por isso, é vital que o possamos compreender bem”, acrescentou.
Baseando-se na sua própria experiência, o defensor público contou que, por vezes, mesmo como jurista, sente dificuldades em interpretar certos artigos do Código Civil em português, por causa da complexidade da linguagem jurídica. “Muitos de nós não estudámos em Portugal. Aprendemos o português recentemente e isso torna mais difícil compreender certos conteúdos”, explicou.
Essa dificuldade, segundo ele, reflete-se na qualidade das ações judiciais: “Se não compreendemos bem, como podemos atuar com qualidade num processo?”, questionou. “Mas com esta versão em tétum, pelo menos conseguimos ter uma melhor noção do conteúdo e facilitar a nossa atuação.”
Sublinhou que o Código Penal foi traduzido para tétum há mais tempo e é mais simples de aplicar nesse sentido. Agora, com a chegada da versão oficial do Código Civil em tétum, considera-se que está dado um passo essencial para tornar o sistema judicial timorense mais inclusivo, compreensível e eficaz.
Segundo Sérgio, embora existam formações para os atores dos tribunais, muitas vezes o tempo não é suficiente para participar. “Formação existe, sim, mas nem sempre é focada nos termos técnicos que utilizamos no dia a dia. O tempo é limitado e estamos muitas vezes mais concentrados em prestar assistência direta aos cidadãos do que em seguir formações completas”, explicou.
Apesar de algumas limitações, o defensor sublinhou que a tradução do Código Civil para o tétum já constitui uma ferramenta útil. “Mesmo que certos termos continuem a ter de ser consultados na versão portuguesa, esta tradução ajuda bastante na compreensão geral dos artigos do Código Civil. Nós que trabalhamos há anos no setor já conseguimos entender, mas para os recém-licenciados e jovens advogados, esta versão em tétum será uma grande ajuda”, afirmou.
Versão anotada em tétum facilita compreensão jurídica e evita interpretações erradas
A diretora executiva do Programa de Monitorização do Sistema Judicial (JSMP, na sigla inglesa), Ana Marçal, elogiou o Ministério da Justiça pela iniciativa de traduzir o Código Civil para a língua tétum, com anotações explicativas artigo por artigo, considerando-a um progresso há muito aguardado pelo setor da justiça.
“Em países como a Indonésia, a lei vem sempre acompanhada de explicações. Isso é fundamental para evitar interpretações erradas. Agora, com esta versão anotada em tétum, adaptada à nossa realidade linguística, podemos finalmente garantir uma compreensão mais uniforme, não apenas entre os operadores da justiça, mas também para o público em geral”, afirmou.
Ana Marçal expressou ainda a esperança de que outras leis, como a Constituição, o Código de Processo Penal, o Código Penal e outras legislações, venham também a conter explicações claras, para que todos possam ter uma compreensão comum sobre a intenção de determinado artigo. Caso contrário, “as pessoas interpretarão de uma forma e os autores dos tribunais de outra, e não podemos afirmar que está errado, pois não existe uma orientação clara que nos diga qual interpretação é a correta”, destacou.
Ana Marçal observou que, embora se recorra ocasionalmente à versão portuguesa para consultas, a tradução em tétum com explicações claras facilita consideravelmente o entendimento da norma jurídica. “Mesmo que a minha interpretação possa estar errada, se há uma explicação oficial associada ao artigo, pelo menos todos seguimos a mesma linha de entendimento”, reforçou.
A diretora lembrou que, durante anos, a ausência de tradução dificultava o acesso e a interpretação. O JSMP observava que muitos operadores da justiça apresentavam um conhecimento limitado do Código Civil devido à sua complexidade linguística. “Alguns atores da justiça conversaram connosco e disseram que têm, de facto, dificuldades em interpretar o português jurídico. Alguns afirmaram que sentem dificuldade em lidar com casos civis complexos e que, devido a essas limitações, acabam por não conseguir atuar da melhor forma”, disse.
Ana Marçal defende que a versão em tétum com anotações pode preencher lacunas que antes dificultavam a uniformidade na interpretação jurídica. “Esperamos que esta situação não volte a repetir-se. Se já temos a tradução, mas as dificuldades continuam a persistir no futuro, então significa que não estamos apenas a falhar no aspeto linguístico, mas também na capacidade individual”, frisou.
A diretora do JSMP destacou ainda a necessidade de domínio da língua portuguesa, lembrando que a maior parte da legislação em Timor-Leste continua a ser publicada em português. “As referências legais continuam a ser em português, então é necessário que haja um bom conhecimento da língua para que a interpretação das normas seja adequada”, reforçou.
A tradução para tétum do Código Civil, segundo a diretora, é vista como uma ferramenta essencial para apoiar os tribunais nas suas decisões. Ana Marçal afirmou que esta versão contribui para melhorar a interpretação e a qualidade das decisões judiciais. “Além de apoiar os operadores da justiça, esta tradução facilita a compreensão por parte do público em geral, permitindo que os cidadãos entendam melhor o funcionamento do Código Civil. Isso fortalece a sua capacidade de procurar justiça nos tribunais”, afirmou.
Ana Marçal apelou ainda ao Ministério da Justiça para garantir uma ampla produção e distribuição desta versão em tétum. “É importante que este documento não fique apenas em gabinetes ou instituições centrais. Deve ser produzido em quantidade suficiente para ser distribuído a estudantes, universidades e ao público em geral, para que mais pessoas possam ler e compreender o conteúdo do Código Civil”, sugeriu.
A diretora do JSMP aproveitou ainda a ocasião para defender alterações ao artigo 1475 do Código Civil, que atualmente reconhece apenas o casamento católico para efeitos civis. “Na realidade, também existem outras religiões em Timor-Leste. O Código deve refletir essa diversidade, permitindo o reconhecimento legal de casamentos celebrados segundo outras confissões religiosas”, argumentou.
Segundo Ana Marçal, esta situação representa uma forma de discriminação, contrariando o princípio constitucional de igualdade e liberdade religiosa. “Não podemos dizer que não há discriminação no país, se na prática os cidadãos de minorias religiosas não conseguem legalizar o seu casamento. A Constituição dá liberdade, mas o Código Civil não traduz isso em regulamentação prática.”
Revelou que o JSMP já apresentou recomendações neste sentido e que a Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ) também submeteu um parecer ao Supremo Tribunal de Justiça sobre o assunto. “O Ministério da Justiça deu sinais positivos, mas reconhece que há limitações em termos de recursos. Ainda assim, esperamos que, nos próximos anos, sejam feitas as alterações necessárias”, apelou.
Jurista pede inclusão de religiões minoritárias e simplificação de processos
Sérgio Quintas também alertou para a necessidade de rever alguns conteúdos do Código Civil que, segundo ele, ainda não reconhecem formalmente certas religiões minoritárias, como o islamismo e o budismo. “Esperamos que, no futuro, o Código Civil seja mais inclusivo e reconheça todas as religiões existentes em Timor-Leste. Por exemplo, ao tratar de documentos no notariado, não deve ser obrigatório seguir apenas práticas ligadas à religião católica, apesar de esta ser maioritária. As minorias também existem e devem ser respeitadas”, disse.
Outro ponto defendido por Sérgio foi a simplificação de certos processos civis. “Há ações que envolvem valores pequenos — mil ou dois mil dólares — que, mesmo assim, exigem a composição de um coletivo de juízes. Isto atrasa o processo e consome muitos recursos. Deveria haver uma revisão para permitir que um juiz singular possa julgar certos casos, o que ajudaria a reduzir a pendência de processos nos tribunais”, sugeriu.
Apesar da existência da versão em tétum do Código Civil, Sérgio frisou que a justiça ainda não é totalmente acessível para todos os timorenses, especialmente fora da capital. “Em Díli, é possível resolver rapidamente casos civis ou criminais. Mas, nas zonas administrativas e nos sucos, a realidade é diferente. Muitos vivem em condições simples e com poucos recursos. Quando enfrentam problemas relacionados com a terra, por exemplo, sentem grande dificuldade em aceder à justiça de forma rápida e eficaz”, apontou.
Nesse sentido, defendeu a implementação urgente da Lei de Organização Judiciária, que permitiria o estabelecimento de tribunais nos municípios. “Com tribunais nos municípios, o Governo pode aproximar a justiça do povo, tornando-a mais eficiente e eficaz. Caso contrário, continuaremos a ver a justiça como algo distante, inacessível para a maioria da população”, concluiu.
Ministro da Justiça admite avanços e promete rever o Código Civil
Relativamente a alterações no artigo sobre o casamento civil, o Ministro da Justiça, Sérgio Hornai, reconheceu que alguns avanços já foram feitos, embora o processo ainda não esteja completo. O Governo pretende continuar os esforços para responder às expectativas da população, mesmo reconhecendo que algumas mudanças podem ser difíceis de implementar de forma imediata.
“Estamos a tentar dar resposta, mesmo que parcial, e avançar progressivamente com melhorias em determinados artigos ou capítulos que abordam implicitamente a matéria”, explicou.
Sobre a Lei do Código Civil, o ministro confirmou que a submissão formal já foi feita e que se encontra atualmente em fase de apreciação por parte do Conselho de Ministros. “O Ministério da Justiça compromete-se a rever o documento com responsabilidade, para garantir a sua submissão adequada ao Conselho de Ministros e posterior implementação eficaz”, disse.
Na entrevista ao Diligente, o Ministro da Justiça, Sérgio Hornai, afirmou que o Governo está a trabalhar em parceria com instituições relevantes para promover esforços que visam aproximar o conhecimento jurídico das comunidades. Acrescentou que um dos principais focos é a tradução do Código Civil, atualmente disponível apenas em língua portuguesa, para o tétum, uma das línguas oficiais de Timor-Leste, de modo a facilitar a compreensão do conteúdo legal por parte da população.
Sérgio Hornai destacou que a iniciativa é positiva e merece o apoio de todos os setores, pois representa um passo importante rumo ao acesso à justiça. Questionado sobre o tempo necessário para a conclusão da tradução, o Ministro da Justiça referiu que ainda não sabe o tempo exato, mas reconheceu que se trata de um processo que exige profissionais com elevada competência linguística, domínio de glossários jurídicos, dicionários especializados e capacidade de interpretação adequada dos termos técnicos.
“Esse trabalho requer tempo, pois é necessário traduzir artigo por artigo, de uma língua para outra, garantindo fidelidade ao conteúdo e clareza linguística”, afirmou o ministro.
Quanto ao orçamento alocado para o projeto, o ministro explicou que ainda não dispõe de informações detalhadas, mas não descartou a possibilidade de apoio através de uma parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Segundo ele, a impressão e distribuição dos documentos dependerá da procura da comunidade e da colaboração com parceiros institucionais.
Na sua intervenção durante o lançamento oficial da tradução do Código Civil para a língua tétum, o Presidente do Tribunal de Recurso, Afonso Carmona, sublinhou que esta obra representa “um passo importante na consolidação de uma justiça acessível, transparente e enraizada não apenas na língua portuguesa, mas também nas identidades linguísticas e culturais próprias de Timor-Leste”.
Carmona realçou ainda que o envolvimento das instituições do Estado nesta iniciativa demonstra “um compromisso nacional com o desenvolvimento de um sistema de justiça que sirva todos os cidadãos, sobretudo aqueles com dificuldade no domínio da língua portuguesa”.
A anotação e tradução do Código Civil para tétum foi descrita como um esforço coletivo que envolveu juízes, juristas, tradutores, académicos e outros profissionais comprometidos com a ideia de que “a justiça só é justa quando é compreendida por quem dela precisa”.
Por sua vez, o Presidente da República, José Ramos-Horta, reforçou a importância da tradução, mas também alertou para a necessidade de se verificar o conteúdo traduzido com o original.
“Espero que os utentes deste trabalho tenham a preocupação de consultar o texto original ou, quando possível, compará-lo com outras traduções, talvez em língua indonésia, para garantir uma boa interpretação”, afirmou, lembrando que já leu várias traduções para tétum que “não correspondem à intenção original do legislador”.
Apesar disso, Ramos-Horta considerou a publicação um avanço importante: “Esta iniciativa representa um passo fundamental para um sistema de justiça que deve ser acessível a todos os que dele recorrem e nele confiam”, concluiu.



É extremamente importante prestar atenção às palavras do Presidente da República. O texto diz antes algo como “com a versão oficial em tétum”, o que está errado. A versão que faz fé é a versão oficial em português, as traduções não devem ser consideradas “traduções oficiais” porque frequentemente têm muitos erros. Conheço quatro traduções da Constituição em tétum, e algumas têm erros gravíssimos, mas continuam a ser disponibilizadas nos sites das instituições públicas, incluindo as do setor da Justiça.