Código Civil em Tétum e Anotado: um propósito ainda por cumprir

Lançado em julho deste ano, o Código Civil em tétum levanta preocupação/Foto: Página da Presidência da República

Este artigo tem como propósito apresentar uma breve análise sobre a recente edição do Código Civil em Tétum e Anotado, lançada a 23 de julho de 2025, com especial atenção às traduções e anotações. Trata-se de uma mera reflexão técnica, longe de ser exaustiva, que se concentra nos aspetos linguísticos, na consistência das anotações e traduções e na utilização das línguas usadas na composição deste relevante instrumento jurídico.

A publicação do Código Civil em Tétum e Anotado representa um marco histórico na procura de Timor-Leste por um sistema jurídico mais inclusivo e acessível, um momento justamente celebrado pelo Presidente da República como um triunfo para a justiça nacional. Ao traduzir e anotar o Código Civil para Tétum, a língua nacional, esta ambiciosa iniciativa procura colmatar a lacuna entre os complexos quadros jurídicos e o quotidiano dos cidadãos, dos profissionais do direito e dos académicos timorenses.

No entanto, uma leitura atenta revela que a edição atual fica aquém do seu nobre objetivo, devido a uma série de falhas de apresentação, organização e conteúdo. Longe de diminuir o seu potencial, estas falhas oferecem uma valiosa oportunidade de aperfeiçoamento. Através de críticas construtivas que permitam uma discussão alargada e consequentes melhorias, o Código Civil em Tétum e Anotado pode evoluir para o recurso indispensável que aspira ser, capacitando o povo de Timor-Leste com uma ferramenta jurídica clara, relevante e utilizável.

Nesta análise, identificamos diversas fragilidades na presente edição traduzida do Código Civil, evidenciadas em determinados artigos que serão objeto de análise ao longo deste ensaio. A tradução e/ou anotação de um instrumento jurídico vigente constitui uma das principais estratégias para a promoção do acesso ao direito e à justiça por parte dos cidadãos – especialmente dos profissionais que atuam no setor judiciário – com o objetivo de garantir a segurança jurídica de todos.

Um dos desafios mais marcantes da edição atual é a inconsistência linguística das anotações, que prejudica a própria acessibilidade que se pretende alcançar. Embora o texto principal seja apresentado em tétum, as notas de tradutores e comentários recorrem frequentemente ao indonésio e ao português, sem marcadores ou explicações claras.

Logo nos primeiros artigos (cf. artigos 1.º, 2.º, 5.º, 7.º, 12.º, 19.º, 23.º e 25.º), observa-se uma mescla de indonésio e português nas anotações, criando dificuldades de compreensão para leitores sem domínio destas línguas. Situação semelhante verifica-se em comentários a artigos como os 338.º, 1389.º, 1480.º, 1481.º e 1693.º, onde tétum e indonésio se misturam, obscurecendo a interpretação para quem não domina o indonésio.

Este mosaico multilingue obriga os utilizadores a recorrer ao texto original em português para maior clareza, frustrando o propósito de acessibilidade de um código anotado. Para resolver esta questão, as anotações devem ser padronizadas integralmente em tétum. Termos estrangeiros, quando inevitáveis, devem ser acompanhados de explicações concisas em tétum ou reunidos num glossário, preservando a precisão sem sacrificar a acessibilidade.

Quanto ao uso da língua indonésia nesta edição, importa destacar que, no âmbito do ordenamento jurídico nacional timorense, a legislação vigente estabelece, por meio do artigo 3.º da Lei n.º 1/2002, de 7 de agosto, que os atos normativos devem ser publicados nas duas línguas oficiais – português e tétum – e que, em caso de divergência, prevalece o texto em português.

Isso significa que a lei atribui à língua portuguesa um papel central como veículo principal na elaboração das normas jurídicas, ao mesmo tempo que contribui, ao longo desse processo, para o desenvolvimento da língua tétum, que ainda carece de terminologia técnico-jurídica própria da tradição romano-germânica (Direito Civilista) adotada por Timor-Leste.

Por outro lado, o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 11/2017, de 29 de março, que trata do regime de utilização das línguas oficiais no setor da justiça, prevê exclusivamente o uso pleno e igualitário das línguas oficiais nos domínios legislativo, administrativo e judiciário. No domínio legislativo, a norma prevê que as propostas de lei, os projetos de decreto-lei, os projetos de decretos, de diplomas ministeriais, de regulamentos e de despachos e outros atos normativos necessários ao desenvolvimento das políticas de justiça, sejam redigidos numa das línguas oficiais e obrigatoriamente acompanhados da respetiva tradução na outra língua oficial.

Os preceitos legais supracitados não admitem a inclusão de qualquer outra língua não oficial na publicação dos atos normativos no Jornal da República, especialmente no âmbito da organização do sistema jurídico timorense. Por essa razão, as anotações em indonésio não cabem na anotação do Código Civil timorense, um instrumento essencial sistematizado de normas que regulam as relações jurídicas entre particulares – ou seja, entre cidadãos, empresas e outras entidades privadas.

Para além da incoerência linguística, a qualidade das próprias anotações e traduções exige atenção urgente, dado que anotações mal escritas e traduções distorcidas correm o risco de complicar a lei, em vez de a clarificar.

Pode afirmar-se que, de modo geral, as traduções feitas estão razoavelmente corretas; porém, há diversas partes que devem ser melhoradas para maior clareza e precisão jurídica. Apresentamos aqui um exemplo  em que a tradução apresenta problemas de fluidez, estrutura e ambiguidade de sentido.

A construção da frase é confusa e não esclarece adequadamente o significado original em português, pois inverte o sentido jurídico do artigo. Em vez de afirmar que a ignorância ou má interpretação da lei não isenta a pessoa do cumprimento nem das sanções, a tradução acaba por sugerir que não é necessário cumprir a lei – o que é exatamente o oposto do que o artigo estabelece. Outro exemplo de problemas de tradução encontra-se no artigo 289.º.

blank

A utilização de termos mal traduzidos ou ambíguos compromete a precisão concetual e pode gerar interpretações equivocadas. O termo “prescrição” foi traduzido como “norma”, o que é incorreto, já que “norma” significa regra e não representa o instituto jurídico que trata da perda do direito pelo decurso do tempo, ou seja, certos direitos podem ser perdidos se não forem exercidos dentro de um prazo determinado pela lei. Da mesma forma, o conceito “não prescrevem” foi traduzido como“la hakerek”, a expressão em tétum que pode ser entendida como “não está escrito”, mas isto não transmite adequadamente o conceito técnico de “não prescrever” que significa “não se extinguir”. Também o termo “servidão”, que foi omitido ou interpretado de forma inadequada como “obrigasaun atu obedese la hakerek”,  não corresponde ao significado jurídico de servidão como direito real que impõe um encargo sobre um imóvel em benefício de outro.

Outras deficiências identificadas referem-se à tradução literal para tétum de certos termos técnico-jurídicos que podem gerar confusão na sua interpretação por parte dos leitores. Um exemplo disso é a expressão “sujeito ativo” (na Secção I do Capítulo III sobre Modalidades das Obrigações) que foi traduzida literalmente como “hakru’uk nafatin”. Essa tradução não transmite com precisão o conceito jurídico original, que na verdade se refere ao “credor”, ou seja, a pessoa que tem o direito de exigir o cumprimento de uma obrigação.

Outros problemas identificados na glosa em tétum de termos como servidão, usufruto, posse, entre outros, dizem respeito a formulações inadequadas e lexicalmente confusas, que deixam os leitores inseguros quanto à sua aplicação em disputas de direitos de propriedade. Essas traduções literais e construções opacas introduzem ambiguidade justamente onde a precisão é essencial, podendo resultar em decisões judiciais inconsistentes ou até erradas.

Essas falhas de tradução não só comprometem a clareza dos textos legais, como também podem afetar a aplicação prática do direito, pois a clareza é a essência de qualquer texto jurídico, e as anotações atuais não cumprem este padrão. A colaboração de linguistas de tétum e de especialistas jurídicos para rever estas notas e traduções poderiam transformá-las em explicações precisas, fluentes e culturalmente ressonantes, garantindo que as disposições do Código Civil não sejam apenas compreendidas, mas também aplicadas de forma fiável pelos seus utilizadores.

A tradução do Código Civil para tétum além de ter como objetivo tornar o sistema jurídico mais inclusivo e acessível deveria apresentar-se como documento legal capaz de espelhar as ricas tradições consuetudinárias de Timor-Leste. Era este o momento para garantir que o Código Civil cruzasse os regimes fundiários estatutários com posse de uma lulik (casa sagrada), um elemento fundamental dos direitos à terra comunal em muitas comunidades timorenses. Esta adaptação cultural está completamente omissa, o que deixa os profissionais mal equipados para conciliar a lei formal com costumes de longa data, particularmente em áreas como os direitos à terra, o direito da família e a herança.

O Código Civil em Tétum e Anotado tem o potencial de ser mais do que uma tradução – pode ser uma ponte entre os sistemas estatutário e consuetudinário. Incluir notas que explorem estas interseções aumentaria a sua relevância e respeitaria a diversidade do património jurídico da nação, tornando-o um verdadeiro reflexo da identidade e das necessidades de Timor-Leste.

Embora o Código Civil em Tétum e Anotado represente um passo louvável no sentido da democratização do conhecimento jurídico em Timor-Leste, a forma como se apresenta corre o risco de “fazer mais mal do que bem”. Com os seus emaranhados multilingues, anotações pouco claras, traduções erradas, lacunas de conteúdo, desconexões culturais e layout errático corre o risco de alienar o próprio público que procura capacitar.

A segurança jurídica pressupõe que as normas estabelecidas sejam claras e compreensíveis, permitindo que os cidadãos sintam que os seus direitos estão assegurados e que podem recorrer à justiça de forma eficaz. Por esse motivo, tanto a letra como o espírito de uma norma, bem como as suas respetivas traduções ou anotações, devem ser apresentados de maneira clara e acessível.

Para terminar, gostaríamos de enfatizar que as falhas aqui expostas não são insuperáveis, podendo ser um ponto de partida importante para um processo de revisão colaborativa, envolvendo linguistas de tétum, juristas locais e internacionais e anciãos das comunidades que poderiam ajudar a enriquecer este documento que assumimos ser de extrema importância para Timor-Leste.

Assim, o Código Civil em Tétum e Anotado poderia transcender as suas limitações atuais e emergir como um farol de justiça acessível, iluminando o direito para todos os timorenses.

Esta opinião é pessoal, e não vincula as instituições que os autores representam!

blankDionísio da Costa Babo Soares é académico e político timorense. Foi titular de vários cargos de relevo no Estado e na sociedade civil ao longo da sua carreira.

 

blankFrancisco de Araújo é professor, tradutor e revisor. Mestrando em Ensino de Português no Contexto de Timor-Leste pela Universidade Nacional Timor Lorosa’e. Atualmente, é docente de língua portuguesa no Ministério do Ensino Superior, Ciência e Cultura (MESCC), lecionando em instituições privadas de ensino superior em Díli. Entre 2011 e 2019, exerceu funções de tradutor jurídico na Direção Nacional de Assessoria Jurídica e Legislação (DNAJL), Departamento de Tradução, do Ministério da Justiça.

Ver os comentários para o artigo

  1. É uma ilusão pensar que o Tétum no seu estado actual pode ser uma língua de trabalho no Direito. Não basta substituir as palavras portuguesas do Código Civil pelas suas correspondentes em Tétum.
    Maior ilusão ainda é pensar que se pode ensinar e aprender Direito sem usar outra língua além do Tétum, pois não existe literatura jurídica em Tétum nem consta que haja juristas capazes de transmitir conhecimento jurídico em Tétum.

  2. Apenas uma análise superficial das irregularidades nas traduções aquí envocadas contata-se uma falta de profissionalismo ou meramente a falta dela. Posso até afirmar que se utilizou ferramentas de aplicativos de tradução com recurso a língua Inglesa do qual gerou uma tradução literalmente “Inglesa “, isto é, no que diz respeito a formulação de frases, resultando da incompatibilidade referente ao resultado final muito aquém do resultado desejado pois as sentenças alteram a precisão dos conteúdos em questão. Concordo que uma prévia colaboração com entidades linguísticas e do setor judicial enriqueciam em muito o documento com mais exatidão e compreensão que se refletirão positivamente na formulação de decisões e outros atores pertinentes em matérias judiciais ou de caráter pedagógico
    .

  3. apos a leitura pormenorizada do artigo nao vinculativo desenvolvido por dois ilustres pessoas conhecidas com uma elevada competencia na area juridica e linguistca, suscitando uma ideia tangente a traducao equivoca que requeira prementemente a participacao de todos os tradutores de alta qualidade com inumeras experiencias de trabalho da area para posterior revisao dependendo da possibilidade de inclusao em prol do bem coletivo. No que concerne a anotacao do Codigo Civil em tetum, nao tenho objecao quanto ao uso de linguas na anotacao porque nao constitui uma violacao juridica pois possui basicamente carater nao vinculativo e nao e oficial. Sendo por essa perspetiva autoral, pode aplicar quaisquer linguas para facilitar a compreensao do publico alvo referente a respetiva anotacao.
    Sabe-se que ha leitor fluente em portugues e ha tambem leitor aprendente em portugues e entre outras linguas. Por isso, variar a lingua no contexto timorense e uma coisa mais-valia a todos os leitores pois somos poliglotas.

Comente ou sugira uma correção

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *