Na passagem pelo país, no âmbito das celebrações da Consulta Popular, o secretário-geral da ONU partilhou detalhes sobre as negociações diplomáticas que visaram a autodeterminação de Timor-Leste.
Na visita a Timor-Leste para participar nas comemorações dos 25 anos da Consulta Popular – celebrada a 30 de agosto –, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, falou sobre as questões que tornaram possível a restauração da independência do país, depois dos 24 anos (1975-1999) em que a nação permaneceu violentamente ocupada pela Indonésia.
Na avaliação do secretário-geral, a conquista da autodeterminação deve ser atribuída, essencialmente, à resiliência do povo timorense.
“Eu penso que a primeira e fundamental razão para que a independência de Timor-Leste tenha sido possível foi a pertinácia da Resistência timorense. E isso tem de ser reconhecido. A Resistência timorense não desistiu. ‘Resistir é vencer’, disse Xanana Gusmão. Mário Soares [político português] tinha outra frase: ‘só é vencido quem desiste de lutar’”, disse António Guterres.
A declaração aconteceu na conversa realizada no auditório do Arquivo & Museu da Resistência Timorense (AMRT), na quinta-feira passada (29 de agosto), em que o secretário-geral foi entrevistado pelo presidente da República, José Ramos-Horta. A dinâmica, transmitida pela emissora local RTTL, também teve o primeiro-ministro, Xanana Gusmão, como convidado.
António Guterres, ex-primeiro-ministro de Portugal (1995-2002), foi um dos principais defensores do direito à autodeterminação dos cidadãos de Timor-Leste. Na conversa, explicou um pouco da sua atuação, recordando que, durante um encontro diplomático entre as nações da União Europeia e da ASEAN, propôs ao ex-presidente indonésio, Hadji Suharto, a libertação de Xanana Gusmão – que se encontrava preso em Jacarta – em troca da abertura de “secções de interesse da Indonésia em Lisboa”. Naquela altura, a Indonésia já enfrentava uma pressão internacional considerável para rever a ocupação de Timor-Leste, sobretudo após a repercussão mundial das imagens do massacre de Santa Cruz.
“Estava instruído para não falar sobre a situação de Timor-Leste. Mas não podia perder a oportunidade. Depois do jantar, aproximei-me de Suharto, pedi-lhe que continuasse sentado e fiz-lhe a proposta. Ele respondeu com algo vago, mas mesmo assim, saí e convoquei uma conferência de imprensa para divulgar a proposta. A partir desse momento, todas as notícias sobre o encontro entre a União Europeia e a ASEAN passaram a centrar-se na proposta. Essa foi a única vez em que estive com Suharto”, recordou o secretário-geral.
Hadji Suharto foi presidente da Indonésia de 1967 até 1998, ano em que, já debilitado, renunciou (sendo sucedido por Bacharuddin Jusuf Habibie). Foi Suharto quem ordenou a invasão, a 7 de dezembro de 1975, e ocupação de Timor-Leste. Estima-se que, durante esse período, os militares indonésios tenham matado cerca de 250 mil timorenses (dados do Governo de Timor-Leste).
António Guterres também criticou o Estado português, que controlou o território timorense desde o século XVI até ao final de 1975, quando a Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN) proclamou a independência, a 28 de novembro. “Timor-Leste teve uma experiência de colonialismo português que foi menos de exploração e mais de abandono. Portugal não fez muito por Timor-Leste. Durante o período de transição para a democracia em Portugal, abandonámos Timor, e esse facto facilitou a invasão indonésia, uma invasão que contou com o apoio dos Estados Unidos”, afirmou.
Até à realização da Consulta Popular, a 30 de agosto de 1999, na qual os cidadãos de Timor-Leste tinham de escolher entre permanecer sob jurisdição da Indonésia ou optar pela independência, desenrolou-se um complexo processo de negociações diplomáticas. Este processo envolveu, principalmente, representantes da Resistência timorense, de Portugal, da Indonésia, dos Estados Unidos da América e da ONU.
“Com a queda de Suharto, surgiu uma janela de oportunidade que foi aproveitada. No entanto, sejamos claros: esta oportunidade não teria existido se a Resistência timorense não tivesse persistido durante décadas. Quando a comunidade internacional não enfrentava divisões geopolíticas graves, foram criadas as condições para a formação da democracia que Timor-Leste é hoje”, afirmou o secretário-geral.
O resultado do referendo, divulgado pela ONU a 4 de setembro, não deixou dúvidas: 78,5% das 446.953 pessoas que votaram (98% dos eleitores recenseados) escolheram a opção da independência. De seguida, o que se viu foi um cenário de terror. Milícias indonésias, fortemente armadas, deram início a uma série de ações bárbaras. Casas foram incendiadas, edifícios, monumentos e estabelecimentos foram destruídos. Muitas pessoas foram mortas.
António Guterres destacou que, na altura, o governo dos Estados Unidos desempenhou um papel crucial para que a comunidade internacional agisse.
“No momento em que os Estados Unidos se convenceram de que uma intervenção era necessária em Timor-Leste, aquilo que parecia impossível tornou-se inevitável. Estávamos a tentar convocar reuniões no Conselho de Segurança da ONU sem sucesso, mas, imediatamente após uma declaração de Bill Clinton [então presidente dos Estados Unidos], a Indonésia aceitou a intervenção. A Austrália pôde liderar a operação, e o Conselho de Segurança, que até então não se reunia, convocou uma reunião de emergência e aprovou a intervenção por unanimidade”, confidenciou.
A Força Internacional para Timor-Leste (INTERFET) desembarcou no país a 20 de setembro, conseguindo conter a onda de violência. Posteriormente, a Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNAMET) e, finalmente, a Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET) exerceram funções essenciais na preparação de Timor-Leste para se tornar uma nação soberana, a 20 de maio de 2002. O secretário-geral da ONU considera que Timor-Leste “ganhou a batalha da independência e ganhou a batalha da democracia”, mas que agora “tem que ganhar a batalha do desenvolvimento”.
Durante esta recente visita ao país, António Guterres ainda foi condecorado pelo presidente da República com a Ordem de Timor-Leste, a mais alta distinção concedida aos cidadãos que contribuíram positivamente para o país.
Na manhã de sexta-feira (30 de agosto), o secretário-geral da ONU (na função desde 2017) participou numa sessão solene no Parlamento Nacional, onde foi agraciado com a nacionalidade timorense pelos “altos e relevantes serviços prestados ao país”. António Guterres, que chegou a Timor-Leste na quarta-feira passada (28 de agosto), partiu hoje, 31 de agosto.
Questões geopolíticas e ideológicas
Durante a conversa transmitida pela RTTL, o primeiro-ministro Xanana Gusmão foi provocado pelo apresentador, José Ramos-Horta, a refletir sobre a ocupação indonésia em Timor-Leste.
O chefe do Governo atribuiu a invasão a questões geopolíticas e ideológicas que surgiram após a Segunda Guerra Mundial.
O período, conhecido como Guerra Fria, foi marcado pela disputa global, de ordem económica, política e militar, entre as duas superpotências da época: os Estados Unidos, que representava o sistema capitalista, e a então União Soviética [atual Rússia], que defendia o socialismo/comunismo.
Segundo Xanana Gusmão, os movimentos locais pela autodeterminação em Timor-Leste começaram a ser vistos como uma ameaça devido à associação de alguns deles aos ideais soviéticos.
“Nós somos a causa da invasão indonésia. A Indonésia não precisava de nós, pois já tinha milhares de ilhas. Mas foi por causa do marxismo que impusemos aqui que vieram. Vieram para derrotar o marxismo. Devo dizer isso. Nós próprios, nas montanhas, matávamo-nos uns aos outros por causa da ideologia”, afirmou o primeiro-ministro.
Xanana Gusmão foi um dos líderes da Resistência, sendo o comandante em chefe das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL). “No mato, alimentávamo-nos de tubérculos e fruta. Tivemos de melhorar a nossa forma de atuação. Cada bala tinha de matar um inimigo. Com o inimigo morto, apreendíamos armas e munições. Uma guerra faz-se de acordo com as condições de cada terra. Foi assim que aplicámos a nossa guerrilha. A população ajudava: produzia mandioca, secava-a e dava-nos”, partilhou.
A 20 de novembro de 1992, Xanana Gusmão foi capturado pelos militares indonésios e preso em Díli. Posteriormente, foi transferido para Jacarta, onde permaneceu preso até 7 de setembro de 1999. Com a restauração da independência, a 20 de maio de 2002, tornou-se o primeiro presidente da República de Timor-Leste.
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