Sobretudo à noite, as ruas de Díli ganham cores e luzinhas: balões transparentes com pequenas luzes coloridas no seu interior brilham à medida que são vendidos pelas crianças, anunciando a chegada da época natalícia. Mas por trás do brilho das luzinhas, está a realidade dura de dezenas de crianças que permanecem nas ruas até altas horas da noite para ajudar as famílias a sobreviver.
Enquanto o Jardim 12 de novembro se ilumina com a luz dos balões, Rui (nome fictício), de apenas 9 anos, carrega um cesto com camarão e pipocas, enfrentando a exaustão de uma jornada dupla: escola de manhã, trabalho à noite. “Vendo porque quero ganhar o meu próprio dinheiro e ajudar os meus pais”, explica, com determinação visível no rosto.
Por volta das 22h, quando a maioria das crianças já deveria estar a dormir, dezenas delas circulam todas as noites pelo Jardim 12 de novembro, pelo Palácio do Governo e por outras artérias da cidade a vender produtos simples, como camarões, pipocas, ovos cozidos e outros alimentos preparados pelos familiares. Nesta época do ano, a rotina ganha cores adicionais: balões transparentes com luzinhas cintilantes, típicos do Natal, brilham nas mãos dos pequenos vendedores. Um cenário que poderia parecer festivo e encantador contrasta, no entanto, com a dura realidade destas crianças, cuja sobrevivência depende também do trabalho precoce nas ruas, muito para além da idade em que deveriam brincar ou descansar.
Há dois anos, esta rotina repete-se. De manhã, Rui é aluno do 3.º ano da Escola Primária do Farol. À tarde, corre para ajudar os pais: a mãe organiza os pacotes e ele prepara-se para a noite de trabalho.
Às 18h, despede-se de Ai Tarak Laran e segue para o Jardim 12 de novembro, o seu ponto de venda. Às vezes sozinho, outras vezes acompanhado de dois colegas, coordena o espaço de forma quase profissional, procurando aumentar as vendas.
Apesar do corpo pequeno e frágil, Rui demonstra uma maturidade admirável. Com sinceridade e determinação, explica que realiza este trabalho para ajudar a família. “Vendo porque quero ganhar o meu próprio dinheiro e ajudar os meus pais”, disse. O seu pai trabalha nos serviços de limpeza em Díli, e a mãe cuida da casa.
O pequeno corpo de Rui sente o peso das noites longas. “Não durmo e tenho sempre dor nos pés”, admite, com um sorriso cansado. Ainda assim, continua a vender os pacotes de comida mesmo quando o movimento diminui. Cada pacote é vendido a 25 centavos e, numa noite, consegue ganhar cerca de cinco dólares americanos.
O dinheiro é cuidadosamente dividido: uma parte vai para ele, guardada no seu armário, e outra é usada pelos pais para a alimentação e itens essenciais. “A minha mãe usa para comprar comida, remédios e coisas para a nossa família”, conta.
Nem todas as noites são seguras. Rui já foi vítima de assalto enquanto vendia .“Um dia, eu estava a ir para o jardim e dois homens numa mota tentaram roubar os meus pacotes. Mas outro homem ajudou-me e conseguimos recuperar tudo”, recorda.
Os acidentes acontecem e alguns deixam marcas que nunca se apagam. Em 2022, dois irmãos, Sónia, de 12 anos, e Frenky, de 8, viviam um dia como tantos outros, vendendo mangas perto do Liceu, perto daUNTL, quando foram apanhados por um trágico acidente de viação. Sónia conseguiu sobreviver, mas Frenky perdeu a .
Apesar do risco, Rui garante que nunca sente medo de vender à noite, porque as pessoas costumam ajudá-lo. O que o preocupa, no entanto, é a polícia e a equipa de gestão do mercado, que não permitem que se venda nas ruas.
Por trás do esforço diário, a criança tem um sonho grande. “Quero ser bombeiro, para poder ajudar a apagar o fogo quando a casa de alguém estiver a arder”, diz, com brilho nos olhos.
Rui sabe que o trabalho lhe rouba tempo de estudo. “Volto para casa já com sono, sem tempo para estudar”, confessa. Mas insiste. Prefere enfrentar o cansaço a voltar de mãos vazias. Quer comprar os seus materiais escolares, ajudar os pais, ser útil e, acima de tudo, ter o direito de sonhar.
Pouco depois de conversarmos com Rui, encontramos Jovita (nome fictício), de 8 anos. Carrega os pacotes de camarão nas mãos e está descalça. “Irmão, ajuda, compra um”, disse várias vezes com a voz quase a quebrar em lágrimas, revelando o peso da necessidade e a esperança que ainda carregava.
Jovita também vive em Ai Tarak Laran. Durante o dia, estuda no 3.º ano da Escola do Farol e brinca como qualquer criança. À noite, junta-se aos irmãos para vender no Jardim 12 de novembro e no Jardim do Farol.
“O dinheiro que ganho, dou à minha mãe para comprar comida”, explica. Vende camarão, banana frita, ovos cozidos e outros produtos preparados pela mãe. Sai de casa às 19h e só regressa entre as 22h e as 23h, dependendo das vendas. “Muitas vezes, voltamos cedo, outras vezes tarde, conforme a sorte”, disse com a cara triste.
Apesar da exaustão, Jovita não desiste. “Estou cansada, com fome, com sono, mas continuo porque preciso de ganhar dinheiro”, admite. Garante que o trabalho não atrapalha a escola, já que estuda apenas durante o dia. “Quero ganhar dinheiro para comprar cadernos e lápis”, afirma com convicção.
“Quero ser médica”, diz com entusiasmo, apesar do corpo pequeno e cansado. Os pais trabalham como vendedores ambulantes e ela ajuda-os.
“A minha mãe diz que só depois de vender tudo é que posso brincar. Se não vender, ela bate-me”, conta com o rosto marcado por um cansaço maior do que a sua idade. Explica ainda que alguns colegas vivem a mesma realidade, em que os pais se zangam porque eles brincam demasiado e não querem vender.
A criança conta que todo o dinheiro que junta ao longo da noite é entregue aos pais e uma parte é guardada para aquilo de que possa vir a precisar, como material escolar. “A minha mãe usa esse dinheiro para comprar mais coisas, para eu poder continuar a vender. E uma parte eu guardo no meu armário”.
Muitas crianças como Rui e Jovita vêm de famílias com baixo rendimento, enfrentam pobreza extrema e precisam de ajudar no sustento da casa, ou simplesmente trabalhar para garantir as suas próprias necessidades básicas.
Apesar de tudo, são crianças educadas, humildes e respeitadoras. Aproximam-se sorrindo, com esperança e paciência, mesmo quando ouvem o “não” que tantas vezes as acompanha na noite. Quando alguém compra, sorriem de alegria; quando não compram, seguem com o rosto entristecido, mas continuam a caminhar, porque parar nunca é opção.
Enquadramento legal e proteção das crianças
A Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL), no artigo 18.º, garante que todas as crianças “têm direito a uma proteção especial por parte da família, da comunidade e do Estado, particularmente contra todas as formas de abandono, discriminação, violência, opressão, abuso sexual e exploração”.
O país é signatário de importantes convenções internacionais, incluindo a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU e a Convenção n.º 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obrigam os Estados a erradicar imediatamente as piores formas de trabalho infantil e a proteger os menores contra exploração e abusos.
Em março de 2023, o Parlamento Nacional aprovou a Lei n.º 6/2023, destinada à proteção de crianças e jovens em situação de risco. O artigo 3.º define que uma criança está em perigo quando: não recebe, de forma grave ou reiterada, cuidados de alimentação, saúde ou educação; é obrigada a atividades ou trabalhos excessivos, inadequados à sua idade ou prejudiciais ao seu desenvolvimento; está exposta a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança, equilíbrio emocional, bem-estar ou formação.
A legislação responsabiliza o Ministério da Solidariedade Social, autoridades policiais, Ministério Público, tribunais e demais entidades de proteção infantil por garantir a aplicação destas normas.
Os artigos 67.º a 69.º do Código do Trabalho estabelecem regras rigorosas para proteger crianças e adolescentes, assegurando o seu direito à saúde, educação e desenvolvimento integral.
A idade mínima legal para trabalhar é 15 anos, exceto em casos de trabalho leve ou participação em programas de formação reconhecidos; menores entre 13 e 15 anos podem realizar apenas trabalho leve, limitado a 5 horas diárias e 25 horas semanais, sem trabalho noturno, com descanso semanal mínimo de dois dias e intervalos de pelo menos uma hora a cada três horas de trabalho; horas extra são proibidas.
A legislação proíbe ainda a contratação de menores para trabalhos perigosos ou que possam prejudicar a sua formação, saúde ou bem-estar físico, mental, moral ou social.
O Código Penal prevê sanções rigorosas para quem maltrata ou explora crianças e adolescentes com menos de 17 anos. Segundo o Artigo 155.º, pais ou responsáveis que pratiquem abusos físicos ou psicológicos, ou que obriguem menores a trabalhos perigosos, exploração económica, escravidão, prostituição ou atividades ilegais, estão sujeitos a penas de prisão de 2 a 6 anos.
Psicóloga alerta para os impactos profundos do trabalho infantil em Timor-Leste
O trabalho infantil continua a ser uma realidade preocupante em Timor-Leste, afetando não apenas a educação das crianças, mas também o seu desenvolvimento emocional e psicológico. A psicóloga Canizia Castela afirma que a exposição precoce a ambientes exigentes e perigosos contribui para o aparecimento de ansiedade, tristeza, medo e sentimentos de responsabilidade excessiva.
“É percetível que a ausência de lazer, o desgaste físico e as exigências do trabalho prejudicam o desenvolvimento emocional e psicológico, dificultando a construção de um ambiente seguro para a autorregulação infantil”, destacou.
Segundo Canizia, o trabalho precoce interfere também diretamente na autoestima e na construção da identidade das crianças. “O trabalho infantil limita experiências positivas necessárias para que elas desenvolvam uma autoimagem saudável. Dificuldades escolares, cansaço, falta de tempo para brincar e cobranças excessivas podem consolidar crenças negativas, como ‘não sou capaz’, ‘não sou bom o suficiente’ ou ‘o meu valor está apenas no trabalho’”, explicou.
A especialista acrescenta que essas experiências fazem com que muitas crianças se percebam como responsáveis por obrigações adultas, provocando ruturas educativas e psicológicas que afetam toda a formação da identidade.
Canizia destaca ainda que o trabalho infantil compromete o desenvolvimento cognitivo e escolar, reduzindo o tempo disponível para estudo e aumentando o cansaço, o que prejudica funções essenciais como atenção, memória e concentração. “Estudos mostram que o trabalho precoce causa danos à escolarização, interrompe o processo educativo e limita a participação social, resultando em prejuízos para o desenvolvimento integral das crianças”, afirmou.
A psicóloga alerta que, em contextos de vulnerabilidade social, o trabalho infantil tende a ser normalizado pela família, sendo visto como uma estratégia de sobrevivência. “Essa normalização reforça crenças disfuncionais transmitidas entre gerações, como ‘trabalhar desde cedo evita problemas futuros’ ou ‘criança que não trabalha é preguiçosa’”, disse.
Para contrariar esta normalização, defende que é necessário investir em psicoeducação familiar e em políticas sociais que ofereçam alternativas concretas à dependência do trabalho infantil. “A violação dos direitos da criança está diretamente relacionada com a falta de políticas de proteção e ao abandono escolar”, sublinhou.
De acordo com Canizia, a psicologia clínica permite identificar indicadores de sofrimento emocional em crianças que trabalham, como irritabilidade, tristeza constante, isolamento social, baixa autoestima, queixas físicas e dificuldades escolares. “A vulnerabilidade física e psicológica deixa as crianças expostas a acidentes, doenças e desgaste, comprometendo o seu bem-estar e desenvolvimento”, referiu.
Para enfrentar o trabalho precoce em Timor-Leste, Canizia defende a implementação de políticas públicas robustas, que fortaleçam a rede de proteção infantil e desconstruam crenças familiares e sociais que naturalizam esta prática. “Entre as medidas mais eficazes estão a garantia de permanência escolar, programas de transferência de renda, políticas de saúde mental, iniciativas culturais e desportivas, fiscalização laboral e ações intersectoriais”, afirmou.
Essas políticas, segundo a psicóloga, são essenciais para romper o ciclo de exploração e assegurar que as crianças tenham acesso aos direitos fundamentais previstos na legislação timorense e internacional.
Deputados alertam para aumento de crianças vendedoras nas ruas de Díli
Em vários cantos de Díli, é fácil encontrar crianças a vender produtos nas ruas. Algumas trabalham ao lado dos pais e outras circulam sozinhas, atravessando estradas movimentadas e colocando a própria vida em risco. Apesar dos esforços do Governo para impedir que menores vendam em espaços públicos, a presença destas crianças continua a crescer, uma situação que tem preocupado também os deputados no Parlamento Nacional.
Durante o debate do Orçamento Geral do Estado (OGE), os representantes do povo manifestaram preocupação com o aumento do número de crianças que trabalham nas ruas de Díli, vendendo desde comida e bandeiras até balões de Natal.
A deputada do CNRT, Cedeliza Faria, chamou a atenção para os riscos enfrentados especialmente por meninas. Segundo a parlamentar, embora todos os menores que trabalham nas ruas estejam vulneráveis, as meninas estão ainda mais expostas.
“Estou muito preocupada com as meninas que vendem na rua. Elas correm riscos maiores. Sabemos que os adultos podem explorar estas crianças. As meninas não têm força para se defender”, alertou.
Cedeliza questionou ainda a eficácia dos apoios financeiros dados às famílias, afirmando que o Governo deveria realizar um estudo para garantir que, após a receção dos auxílios, as crianças deixam realmente de trabalhar.
A deputada alertou ainda para a necessidade de avaliar o impacto real dos apoios financeiros concedidos às famílias. “É preciso um estudo claro. Se o Governo der 500 dólares à família, a criança não pode voltar para a rua. Assim, este programa não pode permitir o aparecimento de outras situações indesejadas”, declarou.
O Ministério da Solidariedade Social e Inclusão, através da Direção de Proteção Social e em parceria com o INDDICA, concedeu, este ano, 250 dólares americanos a famílias de crianças vendedoras identificadas nas ruas, com o objetivo de apoiar as suas famílias a iniciar pequenos negócios em casa e, assim, evitar que os menores continuem a trabalhar na via pública.
O Governo anunciou que, em 2026, o valor do subsídio será aumentado para 500 dólares americanos, por considerar que o montante atual não é suficiente para melhorar significativamente a situação económica das famílias nem para garantir que as crianças deixem de vender nas ruas.
Esta medida integra um esforço mais amplo do Executivo para proteger menores em situação de vulnerabilidade e promover alternativas económicas que reduzam os riscos associados ao trabalho infantil. Nesse âmbito, o INDDICA trabalha em parceria com o Ministério da Solidariedade Social e Inclusão (MSSI) e com o Fórum da Conferência da Juventude (FCJ) na implementação do programa, financiado pelo próprio MSSI.
O projeto estabelece que as famílias beneficiárias recebam previamente formação da Secretaria de Estado das Cooperativas. “O apoio não é para as crianças, mas para os pais criarem um negócio que elimine a necessidade de enviar os filhos para a rua”, explicou Isaías.
Em 2025, dez famílias já receberam este apoio, tendo o orçamento sido transferido para iniciarem as suas atividades económicas. Para 2026, o INDDICA prevê que pelo menos 20 crianças identificadas possam beneficiar do subsídio.
A deputada da FRETILIN, Cristina Yuri dos Santos, também expressou preocupação com o facto de muitas crianças continuarem a vender produtos durante horários em que deveriam estar na escola. “É muito preocupante. O futuro de Timor-Leste são estas crianças”, afirmou, defendendo ações urgentes de monitorização e proteção.
Cristina questionou se o Ministério da Solidariedade Social já possui um sistema de acompanhamento capaz de identificar crianças vítimas de exploração económica e quais medidas o Governo pretende adotar para garantir que o futuro delas não seja comprometido.
Em resposta, a ministra da Solidariedade Social e Inclusão, Verónica das Dores, afirmou que o ministério, em parceria com o Instituto para a Defesa dos Direitos da Criança (INDDICA), tem feito esforços para monitorizar a situação das crianças que vendem produtos nas ruas. No entanto, destacou que a responsabilidade das famílias continua a ser um fator decisivo.
Segundo a ministra, há casos em que as autoridades recolhem as crianças e as devolvem às suas famílias, mas estas afirmam que a venda de produtos é uma ordem parental.
“Algumas crianças que recolhemos dizem que estão na rua porque o pai e a mãe mandaram”, explicou. A ministra reforçou que, apesar dos esforços institucionais, o comportamento familiar ainda influencia diretamente a permanência das crianças na rua.
Um relatório de 2022 da Comissão Nacional contra o Trabalho Infantil (CNTI/NCAIL) apontou que cerca de 52 mil crianças em Timor-Leste estão em situação de trabalho infantil.
Perante esse cenário, a CNTI apresentou seis recomendações para a erradicação do trabalho infantil. Entre elas, destaca-se a criação de um sistema de assistência social para famílias carenciadas e de um plano de ação nacional, com orçamento destinado ao apoio das crianças. As recomendações incluem ainda a sensibilização da população sobre os impactos negativos do trabalho infantil, a criação de escolas totalmente gratuitas — com transporte incluído — e a oferta de serviços de apoio a órfãos.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) alerta que o trabalho infantil compromete drasticamente a conclusão da educação básica e do ensino médio, tendo impacto não apenas no futuro das crianças, mas também no desenvolvimento do país.
Em inspeções recentes de 2025, equipas do Instituto para a Defesa dos Direitos da Criança (INDDICA), em parceria com o Ministério da Solidariedade Social e Inclusão (MSSI) e a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), registaram 50 crianças a vender produtos em espaços públicos, como ruas e semáforos, apenas na capital.
Em julho deste ano, o INDDICA lançou uma campanha com o slogan “Não comprem às crianças. Elas ainda não têm responsabilidade económica”. A iniciativa recebeu críticas de vários setores da sociedade, incluindo o próprio presidente da República, José Ramos-Horta, que questionou se o comércio ambulante realizado por crianças poderia ser considerado trabalho infantil.
Mesmo assim, o Governo mantém as ações de sensibilização para combater o trabalho precoce em Timor-Leste, permitindo que as crianças se dediquem aos estudos e desfrutem do direito à infância.
INDDICA aponta falta de controlo familiar como principal causa de trabalho infantil
O coordenador da Unidade de Monitorização de Violação dos Direitos da Criança do Instituto Nacional da Defesa do Direito da Criança (INDDICA), Isaías Carvalho Pereira, afirmou que a instituição continua a desempenhar um papel fundamental na defesa dos direitos das crianças em Timor-Leste. Entre as suas principais ações estão a monitorização de ameaças, a promoção de legislação e de políticas de proteção infantil e a realização de ações de advocacia em coordenação com o Governo.
Isaías reforçou que o INDDICA tem desenvolvido programas de sensibilização comunitária sobre os direitos da criança, incluindo o direito à educação, à proteção contra a violência, a discriminação e a exploração, bem como o cumprimento das obrigações constitucionais e internacionais do Estado.
A preocupação aumenta perante o número de crianças que continuam diariamente a vender nas ruas. Por isso, o instituto tem intensificado o trabalho de campo para compreender as razões que levam as crianças a envolver-se nesta atividade.
Segundo Isaías, três fatores contribuem para a presença de crianças a vender nas ruas: o social, o económico e o cultural. No fator social, destaca-se a falha na proteção familiar. “Crianças com pais divorciados, num ambiente de violência doméstica ou sem a presença de pai e mãe têm menos proteção, tornando-se mais vulneráveis ao trabalho infantil”, explicou.
O fator económico continua a ser determinante, sendo a pobreza a principal razão que leva as famílias a depender dos filhos para contribuir para o rendimento doméstico. “Quando a família não tem rendimento, pede à criança que venda para ajudar no sustento. Mas há casos em que os pais têm uma boa condição económica e, ainda assim, não sabemos porque é que a criança continua a vender na rua”, lamentou.
Quanto ao fator cultural, Isaías recorda que, em alguns municípios, como Oé-Cusse, a venda de produtos é um hábito tradicional. “Na nossa cultura, é normal as crianças ajudarem os pais no mercado, e isso nem sempre é interpretado como exploração. O problema surge quando a criança vende sozinha, em locais perigosos”, reiterou.
Apesar dos três fatores identificados, o INDDICA considera a falta de controlo familiar a causa mais grave. “Muitos pais estão ocupados com trabalho e não têm tempo para orientar as crianças. Quando existe controlo familiar, a criança não vai vender. O problema é a falta de consciência dos pais relativamente aos riscos a que expõem os filhos”, alertou.
O coordenador reconhece que, além do perigo associado ao trânsito, existem casos de assaltos. “Há relatos de crianças que foram vítimas de roubo, incluindo perda de dinheiro e de bens, embora ainda não tenhamos recebido queixas formais. Quando isso acontecer, a Polícia irá atuar imediatamente”, afirmou.
Isaías considera que as crianças venderem produtos durante duas ou três horas por dia é algo aceitável. “Não há problema nisso, uma vez que apenas estão a ajudar os seus pais. O que não se pode permitir é que as crianças permaneçam nas ruas, como na Timor Plaza, porque isso coloca as suas vidas em risco”, clarificou.
Isaías afirmou que o instituto continua a trabalhar com as autoridades da Região Administrativa Especial de Oecússe-Ambeno (RAEOA), de onde provém uma parte significativa das crianças vendedoras. Desde 2022, foram registados 102 casos, dos quais pelo menos 22 envolvem crianças de Oé-Cusse a vender produtos nas ruas de Díli.
Este ano, o instituto planeia reintegrar oito crianças que manifestaram vontade de regressar à escola e reativar o programa Bolsa da Mãe. No entanto, mudanças administrativas na RAEOA atrasaram o processo. “A coordenação continua a trabalhar para que possamos reintegrar as crianças nas suas famílias, porque elas querem voltar à escola”, afirmou Isaías.
Segundo o INDDICA, já há sinais de melhoria gradual. “Não resolvemos 100% do problema, mas já avançámos cerca de 50%. Desde 2022, reintegrámos sete crianças nas suas famílias”, indicou o coordenador.
Isaías reconhece, contudo, que apesar dos esforços do Governo com programas como a Bolsa da Mãe e o apoio gratuito à educação, o problema ainda persiste. “Nós damos dinheiro às famílias das crianças para que possam melhorar a economia doméstica. Se essa medida não funciona bem, precisaremos de procurar alternativas. O importante é continuar a combater a exploração infantil”, concluiu.
Numa capital onde os semáforos substituem os recreios e atravessar a estrada se tornou parte do dia a dia das crianças, estas continuam a oscilar entre a sobrevivência e a infância roubada. Entre balões natalícios cintilantes e luzinhas que deveriam apenas anunciar festas e brincadeiras, pequenos vendedores percorrem as ruas à noite, lembrando que a proteção da infância exige mais do que programas temporários: exige vigilância constante, educação de qualidade, responsabilização familiar e políticas públicas duradouras que garantam, de facto, o direito das crianças a serem crianças.


