Famílias das vítimas e a Associação Iralalar denunciam o autor por uso indevido de testemunhos e imagens, distorção de factos e exposição de dados sensíveis, enquanto Sérgio Dias Quintas rejeita as acusações, nega manipulação e declara-se aberto ao diálogo, às críticas e a eventuais revisões da obra.
O livro “Raja Veríssimo Dias Quintas: Saya Mati Untuk Kemerdekaan” (Liurai Veríssimo Dias Quintas: Eu Morri pela Independência, em português), escrito por Sérgio Dias Quintas em português, inglês e bahasa indonésia, está no centro de uma forte controvérsia em Timor-Leste.
Famílias das vítimas do Massacre de Muapitine e a Associação Iralalar (ASIR) acusam o autor de plágio, distorção histórica e revitimização dos sobreviventes, especialmente no Capítulo VI, que aborda os episódios de 8 de dezembro de 1983.
A obra, publicada pela editora Lamaholot e lançada em agosto deste ano, tem sido criticada por falsificar o contexto do massacre, atribuir responsabilidades incorretas, plagiar conteúdos de arquivos da ASIR e expor dados sensíveis de vítimas, incluindo relatos de violência sexual.
Associação Iralalar denuncia distorções e plágio
Numa conferência de imprensa realiza na passada quinta-feira (09/10) no edifício da Geração Patriota, no Farol, Díli, a ASIR — que preserva a memória coletiva do massacre e administra o museu comunitário local — expressou indignação após análise detalhada do livro e das entrevistas de Sérgio Dias Quintas aos órgãos de comunicação social timorenses.
Segundo a associação, com base em depoimentos históricos e documentação arquivada desde 1983, o livro apresenta erros graves, viola princípios éticos e compromete a dignidade das vítimas e das suas famílias.
A ASIR criticou especialmente o Capítulo VI, intitulado “O Assassinato no Suco de Muapitine, 8 de dezembro de 1983”. O porta-voz Joviano Reis afirmou que o termo “assassinato” é inadequado para descrever os acontecimentos, justificando que Veríssimo Dias Quintas também participou diretamente na morte de Alberto dos Santos.
“O autor do livro violou princípios académicos na recolha de dados. Foi desonesto e demonstrou falta de sensibilidade humana durante a entrevista com a família da vítima do massacre de Muapitine”, declarou o porta-voz.
A associação contesta ainda a narrativa da página 54, onde o autor afirma que tropas do Batalhão de Infantaria Raider 641 organizaram uma cerimónia de tebe-bebe para executar cinco membros da FRETILIN, com conhecimento da população. Segundo a ASIR, os cinco mortos não eram membros da FRETILIN, mas responsáveis pela rede clandestina local, e a população foi forçada a participar do ato, contradizendo a versão apresentada no livro.
A associação esclareceu também que Lino Xavier, citado como líder clandestino, não ocupava posição de liderança no movimento, sendo apenas responsável delegado da aldeia Pehefitu. A execução também não teria sido feita “em nome do Pancasila”, conforme afirma o autor, sendo Veríssimo Dias Quintas um dos verdadeiros responsáveis pelo massacre.
Na página 55, o livro descreve pânico entre a população devido a um plano supostamente dos militares indonésios. A ASIR afirma que o plano foi elaborado por uma delegação vinda de Lospalos, liderada pelo Bupati Claúdio Vieira, com envolvimento direto de Veríssimo Dias Quintas.
“O plano de matar os cinco mártires foi decidido pela delegação de Lospalos, composta pelo Administrador Claúdio Vieira e Veríssimo Dias Quintas. Quando Ângelo da Costa pediu autorização para assistência médica, foi instruído a ir ao Kodim 1629. O comandante confirmou com o Bupati: ‘vivo ou morto, tem de ser enterrado’. Ângelo ainda tentou impedir a execução, mas foi recusado. No final, enterrou a vítima ainda com vida. Isto mostra que os militares indonésios não iniciaram nem planearam o massacre”, explicou a ASIR.
A associação confirmou como verdadeira a informação da página 56, que identifica os autores diretos das mortes: Júlio Freitas (Ângelo da Costa), Armando Ribeiro (Lino Xavier), Francisco Pinto (Álvaro Freitas), Liurai Veríssimo Dias Quintas (Alberto dos Santos) e Aleixo Pereira (Fonseca Oliveira).
“Dois autores do massacre, originários de Muapitine, foram obrigados a apresentar-se no posto administrativo, enquanto Veríssimo Dias Quintas matou Alberto dos Santos por fazer parte da delegação do Administrador Distrital. A população testemunhou toda a sequência dos acontecimentos”, afirmou a ASIR.
Acusações de plágio e distorção
A ASIR condenou Sérgio Dias Quintas pelo plágio no subtópico “Massacre de Muapitine, 8 de dezembro de 1983” (páginas 58 a 66), que trata da biografia de cinco pessoas falecidas.
“Sérgio Dias Quintas não apenas cometeu plágio, mas fez uma tradução distorcida que alterou a essência das biografias, resultando em distorção da história”, declarou o porta-voz Joviano Reis.
Segundo a ASIR, a biografia copiada foi produzida pela associação em 2023, durante a comemoração dos 40 anos do massacre, mas foi usada no livro sem referência.
A associação apontou ainda erros factuais e de tradução: na página 59, o autor menciona “o aniversário da filha de Falutxay”, quando se referia ao filho, confirmado após entrevista com o Sr. Mausoru. Na página 60, afirma que cinco falecidos forneceram recursos à Falintil, o que guerrilheiros sobreviventes negam.
No subtópico “Relatos das Esposas das Vítimas” (páginas 67 a 86), a ASIR indica que o conteúdo se baseia quase exclusivamente em entrevistas com Mariana Marques, enquanto Emília Torres é citada apenas em dois parágrafos, afirmando não conhecer bem os acontecimentos.
“Isso contradiz a entrevista dada pelo autor à TVE em 26 de agosto de 2025, onde afirmou que as viúvas concordaram que o militar forçou Veríssimo”, explicou o porta-voz.
A associação criticou ainda a exposição de episódios de violência sexual, com identificação da vítima e publicação de fotografia, violando princípios éticos de privacidade, confidencialidade e consentimento informado, e contrariando normas internacionais (OMS, ONU, APA, Belmont Report e COPE). Segundo a ASIR, tais práticas causam danos psicológicos, estigmatização social e revitimização, incluindo impactos para as futuras gerações.
“Sérgio utilizou seu cargo de defensor público para promover interesses pessoais”, afirmou a associação, que vai levar o caso ao Ministério Público.
Família de Ângelo da Costa denuncia uso indevido de testemunhos e imagens
A viúva Maria Marques e o filho Adelino da Costa acusam Sérgio Dias Quintas de uso indevido de testemunhos e imagens, além de distorção dos fatos no livro.
Maria Marques revelou que Sérgio a procurou pessoalmente, acompanhado por outras pessoas, para ouvir seu relato sobre o assassinato do marido, Ângelo da Costa, um dos cinco mártires do massacre. “O sofrimento e a dor são meus. Eu não o procurei, nem pedi nada. Não uso o nome dos mártires para procurar dinheiro”, disse emocionada.
Maria afirmou que nunca autorizou o uso de seu nome, imagem e história no livro, e que seu depoimento foi concedido na crença de que o autor queria apenas conhecer a verdade sobre os acontecimentos.
O porta-voz da família, Delsio Guimarães, acusou Sérgio Dias Quintas de prometer bolsas de estudo para obter depoimentos e de formular perguntas enganosas para fazer parecer que Veríssimo Dias Quintas foi forçado a executar Alberto dos Santos.
Adelino da Costa condenou ainda o uso da fotografia da mãe e da descrição de violência sexual no livro, publicada sem consentimento. “Isso é uma dor que já dura há mais de 40 anos. Vamos levar isto à justiça para defender os direitos da minha mãe”, afirmou, emocionado.
Adelino acusou Sérgio Dias Quintas de tentar reabilitar a imagem do pai, atribuindo-lhe apenas participação forçada no massacre. “Nunca usamos os nomes dos mártires para ter privilégios, mas não vamos permitir que a história seja manipulada para limpar a imagem dos culpados”, declarou.
As famílias exigem remoção integral do Capítulo VI, apelando ao Centro Nacional Chega (CNC) e ao Arquivo e Museu da Resistência Timorense (AMRT) para estabelecerem critérios rigorosos na avaliação de obras sobre a resistência timorense.
O Diretor Executivo do CNC, Hugo Fernandes, preferiu não comentar, pois ainda não leu o livro.
Sérgio Dias Quintas esclarece controvérsias
O autor realizou uma conferência de imprensa, hoje, 15 de outubro, no Salão Esperança, acompanhado da família Dias Quintas, para esclarecer o conteúdo do livro “Hau Mate ba Ukun Rasik Aan”, especialmente sobre o Massacre de Muapitine.
Quintas afirmou que o objetivo não é desacreditar ou difamar ninguém, mas apresentar narrativas históricas de forma transparente e responsável. Reconheceu que o livro gerou insatisfação, mas defende que o público deve ler todas as versões para compreender a história completa.
O escritor admitiu que o pai, Liurai Veríssimo Dias Quintas, esteve envolvido no massacre, mas pediu que os motivos do ato fossem compreendidos no contexto da época, marcado por insegurança e repressão internacional.
“Veríssimo, como chefe do suco Fuiloro, era a autoridade responsável por manter a ordem e convocar a população para participar do massacre”, explicou.
Sérgio destacou que há apenas um sobrevivente, que também deu seu testemunho, relatando envolvimento por força das circunstâncias.
“Após as execuções, os militares indonésios obrigaram a população a formar-se e atacar membros do Matebian. Quem realmente obrigou a população? É isso que deve ser compreendido”, questionou.
O autor afirmou que o livro apresenta relatos baseados em factos e fontes confiáveis, sem exageros ou omissões, com o objetivo de fornecer um relato completo e verdadeiro, evitando manipulações que possam direcionar a culpa a indivíduos específicos ou criar injustiças que confundam o público.
“Estou ciente de que a obra poderá gerar reações diferentes — favoráveis e contrárias — o que é normal, pois o livro visa estimular o pensamento crítico num país como Timor-Leste, que adotou um sistema democrático. Estas opiniões são necessárias para manter o equilíbrio, mas não devem ser usadas para criar inimigos, espalhar ódio ou procurar vingança”, afirmou.
Sérgio Dias Quintas sublinhou que o livro é uma obra pessoal, destinada a enriquecer a história de Timor-Leste, fundamentada em factos e testemunhos.
“Se alguém não aceitar algum conteúdo do livro, encorajo que escrevam também as suas versões, para enriquecer a nossa história da libertação com base em dados reais e relatos dos sobreviventes”, disse.
O autor esclareceu que o livro é uma “autobiografia” do saudoso Liurai Veríssimo Dias Quintas, representando uma parte importante da luta do povo timorense pela autodeterminação, e que foi escrito com base em pesquisas, entrevistas, literatura existente e testemunhos diretos de quem conheceu Veríssimo.
“Aos que não aceitam algumas partes do conteúdo, têm todo o direito de o fazer, mas devem evitar expressar descontentamento com ódio, vingança, difamação ou tentativas de desacreditar terceiros, especialmente quando não se baseiam em factos verificáveis e usam os meios de comunicação de forma irresponsável”, disse.
Sérgio reiterou que está preparado para assumir total responsabilidade pelo conteúdo da obra. “Se for identificado algum ato ilícito durante a pesquisa, produção ou publicação do livro, os mecanismos legais apropriados devem ser acionados para se fazer justiça — nunca através de difamações ou ações motivadas por ódio ou vingança”, afirmou.
Questionado sobre a possibilidade de diálogo com as famílias das vítimas, Sérgio afirmou estar disponível, mas ressalvou que também é necessário ouvir a família Dias Quintas.
O autor, que é militante da resistência, afirmou que não manipulou os factos nem foi desonesto durante a entrevista em Muapitine, Lospalos. “Não manipulo a história para obter qualquer benefício. Estou de boa-fé e com a intenção sincera de esclarecer o episódio do Massacre de Muapitine. Se alguém afirma que eu manipulo os factos, essa pessoa tem o direito de expressar a sua opinião”, declarou.
Em relação à promessa de bolsas de estudo às famílias das vítimas, Sérgio Dias Quintas nega categoricamente. “Nunca fiz essa promessa. No momento certo, perdi contacto com essas pessoas e não guardo ódio de ninguém”, explicou.
Sobre as acusações de plágio, o autor não forneceu explicações detalhadas, limitando-se a comentar. “Apresento ao público o termo plágio. O que isso significa é algo a ser definido”.
Sérgio afirmou ainda que continua aberto a críticas construtivas e admite a possibilidade de revisão do conteúdo do livro. “Escrevi o livro com honestidade, mas reconheço que podem existir erros e falhas. Quem sabe, em algum momento, poderei fazer uma revisão da obra”, concluiu.


