Timor-Leste sob ameaça do crime organizado transnacional

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) afirmou que uma pessoa com funções no Governo de Timor-Leste estará alegadamente envolvida em atividades criminosas. / Foto: DR

Um relatório da ONU alerta que Timor-Leste está na mira de redes criminosas internacionais. Casos recentes de burlas informáticas em Oé-Cusse revelam como cidadãos timorenses têm sido aliciados para esquemas ilegais, levando entidades nacionais a exigir uma resposta coletiva e investigações profundas.

Um recente relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) identifica Timor-Leste como um novo centro de operações para redes de crime organizado no Sudeste Asiático. Segundo o documento, a posição estratégica do país, aliada aos recentes desenvolvimentos económicos, tem facilitado a entrada e a atuação de grupos criminosos transnacionais no território timorense.

O relatório alerta para práticas como fraudes, tráfico de pessoas, esquemas de lavagem de dinheiro e aponta a fragilidade das instituições nacionais perante estas ameaças. Embora não mencione nomes, o documento sugere a existência de ligações suspeitas entre autoridades timorenses e indivíduos envolvidos em atividades ilícitas.

A agência da ONU manifesta ainda preocupação quanto aos riscos que poderão surgir com a adesão de Timor-Leste à Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), prevista para meados de outubro deste ano. O receio é que, sem mecanismos de controlo e fiscalização robustos, o país se transforme numa porta de entrada para operações ilegais na região.

Em resposta ao relatório, o Ministro da Presidência do Conselho de Ministros, Ágio Pereira, divulgou esta semana um manifesto público intitulado “Manifesto pela Defesa de Timor-Leste”, no qual denuncia de forma veemente a infiltração de redes criminosas transnacionais nas instituições do Estado.

Segundo Ágio Pereira, a maior ameaça à soberania nacional não está nas fronteiras, mas sim dentro das próprias instituições, onde a corrupção mina os alicerces da democracia timorense.

O governante acusou um grupo de funcionários públicos de ter facilitado a entrada de redes criminosas provenientes do Camboja, Malásia, Macau e Hong Kong, que estariam a operar em Timor-Leste sob proteção estatal.

“Estes criminosos estrangeiros não vieram como conquistadores com exércitos, mas como corruptores com malas cheias de dinheiro sujo, comprando as nossas instituições, as nossas leis e agora o próprio governo”, afirmou.

De acordo com o ministro, aviões privados terão aterrado em aeroportos nacionais transportando cerca de 11 milhões de dólares em dinheiro vivo, que, por decreto oficial, entrou no país sem inspeção. Este montante faria parte de um total de 45 milhões de dólares que, alegadamente, “fluíram para os bolsos daqueles que venderiam a alma da nossa nação”.

“Funcionários do aeroporto testemunharam com os próprios olhos este tráfico de corrupção. Elementos do governo vangloriaram-se dos ganhos ilícitos, planeando dividir estes milhões quando alcançarem os mais altos cargos da nossa terra”, acrescentou Ágio Pereira.

O ministro denunciou ainda que os criminosos não se limitaram a subornar, mas capturaram instituições do Estado, incluindo o sistema judicial. “A extradição de Arnolfo Teves é um exemplo: elementos criminosos dentro do nosso sistema judicial lutaram até ao último momento para proteger um terrorista”, sublinhou.

Segundo o governante, as redes criminosas infiltraram-se também em órgãos reguladores, concedendo licenças fraudulentas a empresas ligadas ao crime, criaram áreas “protegidas” para tráfico humano e fraude digital, e infiltraram-se em altos níveis do governo, chegando a usar credenciais diplomáticas falsas para atuar com imunidade.

“Isto não é corrupção — isto é conquista através de investimento direto estrangeiro criminoso”, reforçou, alertando que o objetivo destas redes não é governar, mas sim possuir o país, transformando-o num “estado mafioso pessoal”.

Ágio Pereira denunciou ainda que os criminosos pretendem transformar Timor-Leste numa plataforma para viciar jovens em jogos ilegais online, explorar sexualmente mulheres e raparigas, traficar jovens para fábricas de fraude digital e usar a economia local para lavagem de dinheiro. “As leis passam a existir apenas para proteger empresas criminosas, enquanto a nossa soberania é transformada numa mercadoria. Este é o futuro que compraram com os seus milhões. Este é o futuro que devemos rejeitar”, declarou.

O ministro elogiou a recente mobilização estudantil, que obrigou o Parlamento Nacional a revogar leis que favoreciam privilégios das elites, e convocou os jovens a retomarem a liderança nas manifestações populares contra normas e estruturas que beneficiam corruptos.

“Já demonstraram o vosso poder. Agora apelamos a que vos ergais mais uma vez — não apenas contra más leis, mas contra a tomada criminosa de todo o nosso Estado”, disse.

Ágio dirigiu também uma mensagem de apoio aos funcionários públicos honestos. “Sabemos que estão sob pressão e ameaças destas redes, mas o vosso juramento foi feito para servir o povo de Timor-Leste, não os criminosos que querem comprar o vosso silêncio. O povo está convosco.”

O governante apelou ainda às forças de segurança para que se mantenham leais ao povo e à lei. “Estes criminosos escarnecem do vosso serviço diariamente. Fiquem do lado do povo e da justiça, contra aqueles que vos querem transformar em seus servos”, afirmou.

Entre as medidas urgentes que exige ao Primeiro-Ministro Xanana Gusmão e ao Presidente da República, José Ramos-Horta, estão rejeição de todo o dinheiro de origem criminosa; revogação das licenças concedidas a empresas ligadas ao crime organizado; investigação e responsabilização dos funcionários públicos envolvidos; congelamento de ativos suspeitos; cooperação com agências internacionais para desmantelar estas redes; proteção ativa a denunciantes dentro da administração pública.

Para Ágio Pereira, Timor-Leste enfrenta uma encruzilhada histórica: “Temos de escolher: seremos uma nação soberana governada por leis e instituições democráticas, ou transformar-nos-emos num Estado criminoso controlado por sindicatos mafiosos estrangeiros?”

O ministro garantiu que, apesar da confiança demonstrada pelos criminosos no poder do dinheiro, o espírito de resistência que garantiu a independência continua vivo no povo timorense.

“A coragem que expulsou colonizadores e enfrentou ocupações continua nas nossas mãos. Não seremos comprados. Não seremos silenciados. Não entregaremos o nosso país a criminosos”, afirmou.

Ágio Pereira encerrou o manifesto com um apelo à unidade nacional. “A luta não é sobre política, é sobre sobrevivência e futuro. Todo o político honesto, independentemente do partido, deve unir-se. Todo agente da lei que acredita na justiça deve agir em conjunto. Todo cidadão que ama este país deve resistir. Todo o estudante que sonha com um futuro melhor deve lutar em conjunto.”

Concluiu com uma mensagem de esperança. “Os criminosos têm dinheiro, mas nós temos algo mais poderoso: temos a verdade, temos a justiça e temos uns aos outros.”

Xanana pede serenidade e garante estar a acompanhar denúncias sobre crime organizado

O Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, afirmou esta quinta-feira (25/09), após o encontro semanal com o Presidente da República, José Ramos-Horta, no Palácio Presidencial, que o Governo está a acompanhar com atenção as denúncias públicas feitas pelo Ministro da Presidência do Conselho de Ministros, Ágio Pereira.

Xanana Gusmão defendeu uma abordagem cautelosa e institucional relativamente ao alegado envolvimento de membros do Executivo em esquemas de crime organizado internacional.

“Não podemos fazer tudo de repente. Já discutimos no Conselho de Ministros, mas ainda não sei ao certo o que causou todo este alarme. Estou a acompanhar”, declarou.

O Chefe do Governo recordou que ordenou previamente a suspensão de atividades em Oé-Cusse, mencionadas por Ágio nas redes sociais e alegadamente ligadas a jogo online e à entrada irregular de grandes quantias de dinheiro.

“Eu não posso divulgar tudo. Essa atividade em Oé-Cusse, que ouviram falar agora, eu já tinha conhecimento antes. Mandei mesmo parar com aquilo”, afirmou.

Face às graves denúncias sobre possível envolvimento de membros do Governo em atividades ligadas ao crime organizado, Xanana Gusmão sublinhou que, embora receba muitas informações, ainda não tomou decisões definitivas sobre o caso.

O Primeiro-Ministro destacou que Timor-Leste conseguiu alcançar acordos importantes nas negociações marítimas com a Austrália ao adotar uma postura de calma e responsabilidade, defendendo que “democracia é democracia e Estado é Estado”, e que não se deve agir de forma precipitada.

“Não podemos agir de forma exagerada e não é necessário falar abertamente sobre tudo o que fazemos, mas sim com serenidade”, frisou, acrescentando que a sua orientação não é “prender, bater ou acusar pessoas, mas sim expulsar”.

Xanana Gusmão confirmou ainda que Ágio Pereira será ouvido oficialmente no Conselho de Ministros para apresentar diretamente as suas alegações. “Li o que ele escreveu e vamos levá-lo ao Conselho de Ministros para que possa explicar diretamente”, referiu.

O Governo de Timor-Leste exonerou, no final de agosto deste ano, o Presidente da Região Administrativa Especial de Oé-Cusse Ambeno (RAEOA), Rogério Lobato, bem como os secretários regionais que assumiram funções em janeiro de 2024.

Foi igualmente dissolvida a comissão criada no mesmo período para implementar a Zona Económica Especial de Desenvolvimento de Oé-Cusse (ZEEDOA), liderada por João Mendes Gonçalves, antigo ministro da Economia.

Fundação Mahein e RENETIL exigem respostas urgentes do Governo às denúncias de crime organizado

O diretor da Fundação Mahein (FM), Nelson Belo, defendeu que o Governo deve responder de forma urgente e responsável às graves alegações apresentadas pelo UNODC e pelo Ministro da Presidência do Conselho de Ministros, Ágio Pereira, sobre o alegado envolvimento de membros do Executivo em atividades de crime organizado transnacional.

Segundo Nelson, as denúncias feitas por Ágio coincidem com informações já referidas em relatórios credíveis das Nações Unidas, os quais apontam para possíveis ligações entre figuras do Governo e redes criminosas. A FM sublinha que estes relatórios se baseiam em evidências e recomendações que devem ser levadas a sério pelas autoridades timorenses.

“O relatório das Nações Unidas aponta para indícios de envolvimento de membros superiores do Governo em crimes organizados. O Estado deve seguir as recomendações da ONU e afastar temporariamente os membros suspeitos enquanto decorrem as investigações”, afirmou Nelson Belo.

O responsável recordou que a Fundação Mahein já tinha publicado relatórios anteriores com alertas semelhantes, antes mesmo da divulgação oficial do documento da ONU, incluindo informações sobre movimentações suspeitas em Oé-Cusse. Nelson destacou que esses dados foram partilhados com as forças de segurança como orientação para medidas preventivas.

Embora reconheça a gravidade da situação, Nelson Belo criticou a forma escolhida por Ágio Pereira para tornar públicas as alegações. Na sua perspetiva, o ministro deveria ter atuado de forma institucional, utilizando os instrumentos legais do Estado ao seu dispor.

“Ágio Pereira não é uma ONG. É ministro e tem à sua disposição os mecanismos do Estado. Não pode usar o Facebook para desabafar ou fazer denúncias públicas. Deve liderar e agir dentro da lei”, criticou.

Nelson receia que a exposição pública tenha dado tempo aos suspeitos para fugirem ou destruírem provas, levantando ainda dúvidas sobre as intenções da publicação.

“A publicação foi uma jogada para desviar a atenção de outra coisa? Isso é preocupante. Se ele tem provas, deve agir — não apenas alertar nas redes sociais”, afirmou.

A Fundação Mahein alertou também para os impactos sociais e económicos negativos da legalização do jogo online em Timor-Leste. Nelson Belo defende que, em vez de contribuir para o desenvolvimento, o setor representa uma ameaça à estabilidade social, sobretudo para famílias com baixos rendimentos.

“A maior parte das famílias que entram no jogo online acabam por perder os seus rendimentos. O dinheiro que devia servir para alimentação e educação dos filhos está a ser gasto em apostas. Isto gera pobreza”, sublinhou.

Para o diretor da FM, apostar no jogo online como alternativa de diversificação económica é um erro estratégico. Defende que o país deve investir em setores produtivos como a agricultura, as pescas e o turismo sustentável.

“Outros países já mostraram que o i-gaming destrói a economia a longo prazo. Porque não aprendemos com esses exemplos? Jogo online não é desenvolvimento — é empobrecimento familiar”, concluiu.

A Fundação Mahein defende ainda a adoção de uma política nacional de segurança moderna e eficaz, capaz de antecipar riscos e ameaças a médio e longo prazo.

“Precisamos de um plano de segurança nacional claro, sofisticado, com projeções para os próximos 5 a 10 anos, para que as instituições saibam o que enfrentar e como agir”, apelou Nelson Belo.

Por sua vez, o membro da Resistência Nacional dos Estudantes de Timor-Leste (RENETIL), Abel Pires, reagiu com veemência ao manifesto de Ágio Pereira. Em declarações ao Diligente, Abel considerou as alegações do ministro “muito sérias” e exigiu que o Governo adote medidas imediatas para investigar os casos mencionados.

“Se estas informações forem verdadeiras, então o nosso Governo já não é seguro. Não estamos apenas a falar de corrupção — estamos a falar de traição ao Estado”, afirmou, sublinhando a gravidade da situação.

Segundo Abel, os indícios apontam para um possível envolvimento direto de membros do Governo em negócios ilegais ligados ao jogo online e ao crime organizado transnacional. Alertou ainda que esta realidade pode comprometer gravemente a credibilidade do país, sobretudo num momento em que Timor-Leste se prepara para aderir oficialmente à ASEAN, previsto para outubro.

“Em vez de mostrarmos um exemplo positivo de democracia à ASEAN, corremos o risco de apresentar uma imagem manchada por atividades ilegais protegidas pelo próprio Estado”, lamentou.

Para o representante da RENETIL, a única resposta aceitável do Governo é a criação imediata de uma comissão especializada e independente para investigar as denúncias.

“Estas acusações envolvem figuras de alto nível. Se o Governo não agir, a opinião pública pode concluir que até o próprio Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, está envolvido ou a proteger os envolvidos”, advertiu.

Apesar da gravidade das revelações, Abel Pires elogiou a decisão de Ágio Pereira de trazer o assunto ao conhecimento público.

“Percebo que o problema pode envolver demasiadas pessoas dentro do sistema. Por isso, Ágio Pereira trouxe o problema ao público e assim ficamos todos atentos e preparados para o enfrentar”, afirmou.

Abel acrescentou que a questão já deveria estar a ser debatida no país, mas que, devido às manifestações estudantis contra o Parlamento, o tema permaneceu em silêncio. Sublinhou, no entanto, que, após estas revelações, cabe agora ao Governo agir de forma concreta, sob pena de as instituições ficarem completamente capturadas por interesses criminosos.

“Se não agirmos agora, a nossa independência será apenas um documento no papel. Os criminosos comprarão tudo — desde a lei até à própria burocracia. E o povo ficará refém disso”, alertou.

Timorenses enganados com promessas de emprego e usados em esquema de burla informática em Oé-Cusse

Um grupo de jovens timorenses foi atraído por uma suposta empresa de marketing com promessas de salário fixo, alimentação e alojamento gratuitos, mas acabou envolvido, sem o saber, num esquema internacional de burla informática. A operação, ocorrida em agosto deste ano, foi desmantelada pela Polícia Científica de Investigação Criminal (PCIC) na Região Administrativa Especial de Oé-Cusse Ambeno.

Abui (nome fictício), de 24 anos, foi uma das vítimas. A jovem contou ao Diligente que o recrutamento foi divulgado através da rede social TikTok para um alegado trabalho na área do marketing, sem que fosse indicado claramente o nome da empresa contratante.

“Disseram-nos que seria um trabalho normal de promoção de produtos, com um salário mensal de 320 dólares. Nunca nos explicaram exatamente o que iríamos fazer. Só depois é que percebemos que se tratava de um esquema de burla”, afirmou.

Segundo a jovem, o processo de recrutamento foi muito rápido. Os candidatos entregaram documentos como o Bilhete de Identidade, registo criminal e currículo no Timor Plaza, em Díli, e foram logo chamados para entrevista.

“No mesmo dia em que entregámos os documentos, fizemos a entrevista e disseram logo que tínhamos passado. Depois avisaram que o trabalho seria em Oé-Cusse, e não em Díli”, contou.

Abui relatou que a empresa ofereceu as passagens para Oé-Cusse, alojamento num hotel de cinco estrelas e alimentação. No entanto, ao chegarem ao destino, os jovens foram informados de que o trabalho seria realizado durante a noite, para coincidir com o fuso horário entre o Brasil e Timor-Leste.

No local, os trabalhadores foram treinados para falar português com sotaque brasileiro e receberam textos prontos para repetir durante as chamadas telefónicas. As ligações eram feitas exclusivamente para números brasileiros, pertencentes sobretudo a idosos, com o objetivo de os convencer a aceitar produtos supostamente oferecidos, como painéis elétricos, lençóis, copos e purificadores.

“Estávamos na secção de promoção em português, por isso o nosso alvo era o Brasil. Ligávamos e dizíamos que o número deles tinha sido selecionado por um sistema e que iriam receber um presente em casa. Pedíamos o nome completo, cidade, bairro, número da casa e código postal. Era só isso. Não pedíamos dinheiro nem conta bancária aos clientes”, explicou Abui.

Apesar disso, os trabalhadores nunca souberam se os produtos eram realmente enviados e desconheciam a origem exata dos contactos telefónicos. Abui afirmou que a empresa dizia ter comprado as listas e pedia apenas que os trabalhadores seguissem o guião.

“Tudo era feito num computador. Recebíamos uma lista de contactos e fazíamos chamadas até alguém atender. Se ninguém atendesse, voltávamos a tentar no dia seguinte. Só falávamos com idosos brasileiros. Jovens, nunca”, contou.

Com o passar dos dias, começaram a surgir dúvidas entre os trabalhadores sobre a legalidade da atividade. “A empresa proibia o uso de telemóveis pessoais, tirar fotografias no local de trabalho e até aplicava multas de até 20 dólares em caso de desobediência”, relatou.

A situação culminou com a intervenção da PCIC, que realizou uma operação no local, apreendeu equipamentos e interrogou os trabalhadores.

“Ficámos com muito medo. A polícia disse que estávamos envolvidos num crime de burla informática. Mas nós só seguíamos instruções. Ninguém nos explicou nada antes”, lamentou a jovem.

Outra vítima, Ambere (nome fictício), de 25 anos, contou uma história semelhante. O jovem aceitou o emprego por considerar uma boa oportunidade. “Aceitei porque ofereciam um salário bom, de 350 dólares por mês”, disse.

Já em Oé-Cusse, os trabalhadores receberam brochuras com textos prontos para usar durante as chamadas. Durante uma semana, foram treinados para adaptar o discurso, ouvir colegas mais experientes e aprender a falar com sotaque brasileiro.

“Não tínhamos outro trabalho, só este. Entrávamos às nove da noite e sentávamo-nos em frente ao computador. Recebíamos listas com cerca de 100 contactos, todos do Brasil. Tínhamos de ligar para todos. Alguns atendiam, outros não. O nosso trabalho era apenas ligar”, contou.

Ambere e os colegas não sabiam exatamente o que fariam, mas foram informados de que deviam usar nomes brasileiros falsos, como João Paulo ou André Belo, durante as chamadas, para que os clientes acreditassem.

“Escolhi o nome João Paulo. Quando os clientes atendiam, eu dizia: ‘Sou o João Paulo, do centro de atendimento de comércio brasileiro’, e depois lia o texto do guião. Se os clientes não queriam, tínhamos de arranjar forma de os convencer”, relatou.

Ambere afirmou que os produtos oferecidos como “presentes” incluíam lençóis, panelas elétricas e aparelhos eletrónicos. “Os patrões diziam que os produtos seriam entregues, mas nunca vimos isso acontecer”, afirmou.

O trabalho consistia apenas em confirmar os dados dos clientes — nome, cidade, rua, número da casa e código postal — e passar a informação para os patrões.

“Os patrões davam-nos os números com nome completo e morada. Nós ligávamos, confirmávamos os dados e, se a pessoa dissesse que queria o presente, passávamos a informação para os patrões. Se perguntassem como tínhamos o número, dizíamos que tinham feito uma compra online e foram sorteados no aniversário da plataforma”, explicou.

No início, Ambere estranhou quando lhe pediram para não usar o seu nome verdadeiro e deixar o telemóvel pessoal fora do local de trabalho.

“Foi aí que comecei a desconfiar que o trabalho era perigoso e ilegal. Lá dentro, não podíamos conversar. Só falávamos ao sair. Enquanto estávamos ao computador, tínhamos de estar focados no telefone. Não podíamos dormir”, contou.

O jovem afirmou que alguns colegas mais antigos já os tinham alertado de que o serviço era ilegal, mas, como já tinham sido recrutados e o salário era atrativo, decidiram continuar.

Ambere destacou ainda a diferença entre as equipas: “Na secção em bahasa indonésia havia muitos trabalhadores, enquanto na nossa apenas oito pessoas. Quando um dos meus colegas pediu para se demitir, o patrão perguntou sobre as suas expectativas salariais e disse que devia mostrar dedicação ao trabalho. Mas o colega não aceitou e acabou por sair.”

Segundo Ambere, se numa noite não conseguissem convencer nenhum cliente, tinham de continuar a ligar para os 100 números até ao final do turno. No fim, entregavam um relatório com os resultados das chamadas.

“Numa noite, se conseguíssemos convencer cinco ou seis clientes, os patrões ficavam satisfeitos. Diziam que, por cada confirmação, ganhávamos um bónus de cinco a dez dólares”, contou.

Após três turnos, Ambere já dominava as instruções e pediu para poder falar diretamente com os clientes, sem supervisão. Mas foi nesse momento que tudo mudou.

“No terceiro dia, enquanto eu falava com um cliente, a PCIC entrou no escritório. Fechei logo a chamada. Estávamos oito a trabalhar naquela noite. A polícia recolheu os nossos telefones e depois foi ao escritório dos patrões”, recordou.

Ambere confessou que a chegada da polícia causou pânico entre os trabalhadores. “A PCIC tinha câmaras. Tivemos medo que publicassem as nossas caras nas redes sociais. Ficámos envergonhados”, disse.

O jovem afirmou que toda a experiência serviu de lição. “Foi uma aprendizagem para o futuro. Agora sei que, antes de aceitar qualquer emprego, é preciso investigar bem a empresa para não voltar a ser enganado. A culpa foi dos patrões e do Governo. Nós não sabíamos nada. Estávamos desempregados e vimos o trabalho como uma oportunidade para ganhar dinheiro e sustentar as nossas necessidades”, concluiu.

PCIC desmantela esquema online em Oé-Cusse

Mário Tavares, porta-voz da Polícia de Investigação Criminal de Timor-Leste (PCIC), afirmou que, em agosto, foi realizada uma operação contra crimes de esquemas online no hotel Oe-Upo, em Oé-Cusse, centrada em atividades de exploração de jogos ilícitos e fraudes informáticas. A ação resultou no desmantelamento de uma organização que operava a partir de um call center na região.

Segundo Mário Tavares, o esquema consistia no recrutamento de cidadãos para trabalharem no call center, onde eram feitas tentativas de enganar vítimas, explorando as suas identidades e documentos para oferecer falsas lotarias e prémios com o objetivo de fraudar terceiros.

“A investigação detetou a existência deste centro em Oé-Cusse após a análise de informações recolhidas ao longo do tempo. Na operação, as autoridades apreenderam diversos equipamentos eletrónicos: 87 desktops, 13 laptops, 194 telemóveis, um ponto de acesso Wi-Fi, duas antenas Starlink e 135 cartões SIM de diferentes operadoras em Timor-Leste. Foram também confiscados dispositivos relacionados com fraudes informáticas, incluindo 54 desktops, 4 laptops e 53 telemóveis, entre outros equipamentos”, afirmou.

O porta-voz acrescentou que a PCIC, em cooperação com outras autoridades e agências de inteligência, identificou 10 suspeitos, atualmente sob investigação.

Mário explicou que o esquema online envolvia o envio de mensagens e chamadas a pessoas na região da Ásia, informando falsamente sobre prémios para os quais as vítimas deveriam pagar taxas administrativas. “Muitas vezes, os criminosos solicitavam que as vítimas transferissem dinheiro para locais controlados por eles, com o intuito de obter dados pessoais e senhas bancárias”, disse.

A polícia alerta a população para que esteja atenta a estas tentativas de fraude, recomendando que não forneçam informações pessoais nem realizem transferências financeiras solicitadas por mensagens ou chamadas suspeitas.

Atualmente, a investigação prossegue, com 10 suspeitos identificados e a PCIC a colaborar com agências internacionais para desmantelar completamente a rede de crime organizado.

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  1. O Jogo online não é um desenvolvimento Nacional
    O jogo online é uma empobrecimento da familia, e destrotivo a economia familiar enfraquece. Os filhos abadonados seu estudos, abandonam seus lugares de vivencias. Algumas pessoas estão deixar seu logar de vivencias venham viver alojadas nas cidades, todos os estão na frente do COMPUTADOR do JOGOS ONLINE, ficam parados o dia até a noite, nuca sonham sobre suas esposas nem filhos.

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