Timor-Leste debateu a preservação da memória e do património nacional no Seminário Nacional sobre a Salvaguarda do Património Audiovisual. Investigadores, governantes e especialistas sublinharam a urgência de digitalizar documentos históricos, imagens e registos audiovisuais para garantir que a história do país seja conhecida pelas futuras gerações.
A memória coletiva timorense, expressa em símbolos como o Tais ou nas imagens captadas por Max Stahl, precisa de ser protegida não apenas como herança histórica, mas também como instrumento de educação, reconciliação e desenvolvimento sustentável.
Esta foi uma das ideias centrais do Seminário Nacional sobre a Salvaguarda do Património Audiovisual através da Tecnologia Moderna, realizado no Arquivo e Museu da Resistência Timorense (AMRT) na passada quinta-feira, 18 de setembro, que reuniu investigadores e governantes para discutir estratégias de preservação da identidade nacional.
O encontro serviu de alerta para a urgência de digitalizar documentos e registos históricos, garantindo a sua conservação para as gerações futuras.
Antero Bendito da Silva, docente da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL) e orador no seminário, partilhou a sua experiência de pesquisa sobre a história de Timor-Leste, iniciada em 2001. Na altura, procurava conhecer os registos sobre os seus antepassados, mas deparou-se com a ausência de documentação.
Mais tarde, em 2008, já no doutoramento, aprofundou os estudos sobre a Revolução Maubere. “Depois da Indonésia deixar o país, cerca de 60% da população não sabia ler nem escrever. Para desenvolver o país, precisamos de educação, mas temos de aprender através do nosso passado”, sublinhou.
Na sua investigação, encontrou em Portugal documentos sobre Timor-Leste que estavam guardados de forma desorganizada em armazéns e que, anos depois, foram devidamente arrumados e digitalizados”, contou.
Situação semelhante verificou na Austrália, onde a Associação de Timor-Leste (AETA) acabou também acabaram por preservar os registos através da digitalização.
Antero Bendito recordou também um episódio com um cidadão australiano que, durante manifestações de apoio a Timor-Leste, recolhia cartazes abandonados nas ruas. “Depois de os reunir, conseguiu criar uma biblioteca para preservar esses cartazes e outros documentos”, relatou.
O orador destacou ainda a importância do património audiovisual, citando o especialista da UNESCO Ray Edmondson, que considera os registos não apenas documentos técnicos, mas sim património vivo. Segundo explicou, Edmondson defende que a preservação e valorização dependem da compreensão de cinco dimensões: património, conhecimento, agentes, profissão e instituição.
Na primeira dimensão — o património — Antero referiu fotografias antigas, notas de investigadores e documentos da comunidade internacional, sobretudo aqueles que testemunham a solidariedade global com a luta pela independência. “Mas como é que conseguimos arquivar estes documentos aqui em Timor-Leste? Por exemplo, depois de cem anos, alguns dirão que, para conquistar a independência, muitos timorenses morreram e o mundo apoiou, mas onde está a memória desse esforço coletivo?”, questionou.
Com o desenvolvimento tecnológico, acrescentou, o património está em constante transformação, já que as redes sociais difundem diariamente novos registos. “Veja-se a manifestação que durou três dias em frente ao Parlamento Nacional: foi uma ação pacífica e histórica, organizada pelos jovens. Precisamos de a registar e arquivar, porque isso é memória histórica”, defendeu.
Na segunda dimensão — o conhecimento — Antero lembrou que, até à década de 1990, a área audiovisual não tinha ainda metodologias sistematizadas. “Quando aprendermos a gerir centros como o de Max Stahl, aprendemos também tecnologia e muitas outras coisas. Acho que estes centros devem ser objeto de estudo. Quando uma instituição produz conhecimento, ganha identidade para arquivar documentos e transmiti-los às novas gerações”, sublinhou.
Quanto à dimensão dos agentes, salientou a necessidade de fomentar interesse e consciência para formar arquivistas e multiplicar experiências. Já nas dimensões profissional e institucional, destacou a diversidade de modelos existentes: desde instituições com fins sociais até às que têm propósitos científicos, como as universidades.
Antero evocou ainda exemplos de turismo de memória, como Hiroshima, no Japão, que serve de referência para locais históricos timorenses ligados à resistência, como Matebian e Kablake. “O património audiovisual também precisa de apoio institucional, através de legislação e de políticas públicas, para se afirmar como uma instituição de Estado, ligada ao Ministério da Educação, reforçando o conhecimento e a salvaguarda do arquivo”, frisou.
Para o académico, este trabalho deve ser orientado pela filosofia do desenvolvimento sustentável. “Os materiais que temos hoje devem permanecer preservados durante os próximos mil anos”, afirmou. Nesse sentido, defendeu a criação de uma Biblioteca Nacional de Timor-Leste e sugeriu a realização de um fórum de diálogo contínuo para partilhar conhecimento e unificar as organizações que atuam na área da memória e do património.
Preservar o património com o apoio da UNESCO
Também Luís Nívio Soares, orador e Secretário da Comissão Nacional de Timor-Leste para a UNESCO, sublinhou, durante o seminário, a importância das convenções internacionais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), já ratificadas por Timor-Leste e que traçam as linhas orientadoras para a preservação do património nacional.
Segundo explicou, existem três convenções centrais: a Convenção de 1972, sobre o património mundial; a Convenção de 2003, dedicada ao património cultural imaterial; e a Convenção de 2005, relativa à proteção e promoção da diversidade e expressão cultural.
“As duas últimas já estão implementadas. Quanto à primeira, que trata da identificação e proteção de sítios culturais e naturais com valor universal excecional, ainda não realizámos estudos específicos. Contudo, já iniciámos reuniões com os ministérios competentes para identificar os patrimónios e, no futuro, poderemos criar um comité dedicado a essa área”, afirmou.
Sobre a Convenção de 2003, que abrange práticas como o Tais, danças, músicas tradicionais e rituais, Luís Nívio Soares lembrou que, em 2021, Timor-Leste inscreveu o Tais como património cultural imaterial. “Houve alguma confusão. Falamos de património imaterial, algo que não podemos tocar. Mas como é que o Tais, sendo tangível, foi registado como imaterial? O que significa é que os nossos antepassados, sem recorrer a aulas formais, conseguiam produzir o Tais através da sua inteligência e saberes tradicionais”, esclareceu.
Relativamente à Convenção de 2005, dedicada à diversidade cultural, destacou que o Governo pode apoiar artistas na produção cinematográfica ou músicos no acesso ao mercado internacional.
De acordo com o responsável, a UNESCO tem apoiado Timor-Leste através de formações dirigidas ao Governo, no âmbito da proteção do património cultural, e também com ações de sensibilização comunitária. “Já conseguimos incluir o Tais no currículo nacional”, referiu.
Luís Nívio Soares destacou ainda locais de grande relevância para o património mundial, como a gruta de Lene Hara, em Lospalos, e o Colégio Nuno Álvares, em Soibada, Manatuto. “Podemos avançar com uma inventariação nacional e, posteriormente, submeter propostas à UNESCO. É um processo demorado, mas é o caminho para que os patrimónios timorenses possam ser reconhecidos internacionalmente”, explicou.
O orador mencionou também programas desenvolvidos em parceria com a Secretaria de Estado das Florestas, como o do Parque Nacional Nino Konis Santana, integrado no Man and Biosphere Programme. “Precisamos de cumprir critérios como a conservação da biodiversidade, o desenvolvimento sustentável e o apoio logístico, sobretudo nas áreas da investigação e da educação”, referiu.
No que respeita à preservação documental, Luís Nívio Soares destacou ainda o Memory of the World Programme da UNESCO, que permite a governos, instituições ou indivíduos proporem documentos históricos para registo internacional. “Devemos reconhecer o trabalho do CAMSTL, pois o único documento timorense registado até hoje como memória mundial pela UNESCO foi o do 12 de Novembro, já reconhecido como património documental da humanidade”, concluiu.
Digitalizar para preservar a memória
O Secretário de Estado da Comunicação Social (SECOMS), Expedito Dias Ximenes, sublinhou que Timor-Leste precisa de acompanhar as transformações tecnológicas para não ficar para trás.
“No mundo moderno, tudo é digital e impulsionado pela tecnologia global. Por isso, Timor-Leste precisa de caminhar lado a lado com estas mudanças. Neste momento, enfrentamos, em simultâneo, pressões e progresso”, afirmou.
Segundo o governante, o uso massivo da internet e dos telemóveis alterou a forma como as pessoas acedem à informação, reduzindo a dependência da rádio e da televisão analógicas. Nesse contexto, recordou que a RTTL e a Tatoli, enquanto órgãos de comunicação social do Estado, têm a responsabilidade de prestar serviço público e adaptar-se às novas plataformas.
Expedito Dias Ximenes destacou que a RTTL possui vastos materiais arquivados desde 1999, ainda em suportes como cassetes VHS (Video Home System). “A digitalização é uma prioridade essencial para não perdermos os arquivos históricos. Estes documentos audiovisuais estão em processo de degradação, porque permanecem em cassetes VHS. É uma questão preocupante: se não agirmos rapidamente, há risco de destruição irreversível”, alertou.
Para responder a este desafio, o Governo estabeleceu uma parceria com o CAMSTL para salvaguardar e digitalizar os materiais da RTTL, transformando-os em produtos históricos acessíveis ao público.
“Antes, o sistema analógico fazia degradar rapidamente as imagens, e os áudios ficavam cheios de ruídos e falhas. Com o digital, podemos restaurar a qualidade, garantir a preservação para o futuro e facilitar o acesso de todos aos registos”, explicou.
Entre os documentos mais valiosos da RTTL, o Secretário de Estado destacou os arquivos da Restauração da Independência, em 2002, bem como os registos que documentam duas décadas da vida cultural, política e social do país. “Se não digitalizarmos estes materiais, pouco a pouco, vamos perder a nossa memória coletiva”, afirmou.
Expedito Dias Ximenes sublinhou ainda a relevância do jornalismo enquanto testemunho histórico. “Os produtos jornalísticos antigos são arquivos vivos da memória coletiva. As gravações de notícias sobre acontecimentos sociais, culturais e económicos de uma nação constituem testemunhos da sua caminhada. É por isso que a filmagem de Max Stahl sobre o massacre de Santa Cruz é considerada uma prova autêntica da realidade vivida durante a luta pela libertação nacional”, exemplificou.
O governante acrescentou que os registos jornalísticos antigos devem ser entendidos como recursos educativos e de investigação. “Relatórios investigativos, documentários e artigos são instrumentos de aprendizagem para estudantes, investigadores e também para os jornalistas de hoje. O jornalismo histórico pode inspirar as novas gerações, ajudando os jovens a serem corajosos, responsáveis e íntegros”, concluiu.
Legado audiovisual e memória da nação de Max Stahl
O diretor do Centro Audiovisual Max Stahl de Timor-Leste (CAMSTL), Eudicito Pinto, afirmou que a realização do seminário teve como objetivo refletir em conjunto sobre formas de salvaguardar a história que define Timor-Leste enquanto nação.
Para o responsável, preservar o património audiovisual significa também honrar os sacrifícios dos mártires e reconhecer a dedicação do falecido Max Stahl, cuja câmara revelou ao mundo a verdade sobre a luta timorense. “As suas imagens do massacre de Santa Cruz não apenas registaram um episódio da nossa história, como também despertaram a atenção internacional para a nossa luta e deram voz ao nosso povo. Foi por isso que, em 2013, a UNESCO reconheceu este arquivo como parte da Memória do Mundo, constituindo um grande orgulho para Timor-Leste”, sublinhou.
Eudicito Pinto destacou ainda que o legado de Max Stahl permanecerá vivo através do trabalho do CAMSTL. “Não basta apenas preservar. É essencial garantir que estas memórias estejam acessíveis a estudantes e investigadores, nacionais e estrangeiros, para que conheçam a nossa história. Assim, os arquivos tornam-se instrumentos de reconciliação e de paz”, afirmou.
O diretor recordou também que, em 15 de abril de 2025, a SECOMS e o CAMSTL assinaram um acordo para a digitalização e preservação dos materiais da RTTL e da Tatoli, com vista a salvaguardar os arquivos da comunicação social do Estado.
“Enfrentamos desafios importantes, como a fragilidade das fitas magnéticas, dos filmes e de antigos formatos digitais, que correm o risco de se perder para sempre. Se não agirmos com urgência, perderemos uma parte essencial da nossa história. O CAMSTL assume, por isso, a responsabilidade de realizar este trabalho, com o compromisso e a visão de usar a tecnologia ao serviço da memória”, afirmou.
O Presidente da República também esteve presente no evento. José Ramos-Horta salientou que a preservação do património audiovisual com recurso a tecnologias modernas é fundamental para assegurar a continuidade do arquivo deixado por Max Stahl. “Vim aqui porque tudo o que está ligado a Max Stahl está também ligado à memória audiovisual da nossa nação. Esta memória é tão importante como qualquer outro acontecimento marcante da nossa história”, destacou o Chefe de Estado.
O seminário deixou claro que preservar a memória timorense é não só um dever de Estado, mas também um compromisso coletivo para garantir que a história e a identidade nacional perdurem no tempo.


