Em Timor-Leste, há alimentos que não se comem — não por razões médicas ou religiosas convencionais, mas por respeito às tradições orais, aos espíritos dos antepassados e ao direito consuetudinário. De enguias a ervilhas, passando por carne de cão, os tabus alimentares mantêm-se vivos através de rituais, mitos e sanções invisíveis, muitas vezes transmitidos em segredo entre gerações.
As tradições orais em Timor-Leste não são apenas uma expressão cultural – constituem uma identidade viva para cada pessoa. Estas tradições abrangem regras e normas que orientam a forma de viver, falar, cooperar e se relacionar em sociedade.
Nas casas tradicionais ou sagradas, a palavra dos antepassados assume um valor simbólico profundo, e as normas transmitidas oralmente são seguidas com rigor, mesmo quando as suas origens já não são plenamente compreendidas. Como em tantos outros aspetos da vida, a alimentação também desempenha um papel central nestas práticas.
Em algumas casas, determinados alimentos são proibidos para certos descendentes. Não por serem, em si, considerados sagrados, mas por estarem tradicionalmente associados ao sagrado. Mesmo sem explicações claras quanto à sua origem, essas proibições continuam a ser respeitadas.
Estas práticas refletem uma relação espiritual com a terra, com o ambiente e com narrativas ancestrais que, muitas vezes, não podem ser discutidas abertamente. São transmitidas de geração em geração como forma de preservar a tradição oral e manter o respeito pelos laços espirituais e comunitários.
Sérgio da Silva, da comunidade Ara Diga, da tribo Ua-Bubu, no Posto Administrativo de Ossu, em Viqueque, contou que, na sua casa sagrada, existe uma proibição ancestral quanto ao consumo de banana vermelha e cana-de-açúcar vermelha. Esta regra é seguida desde tempos imemoriais, embora não exista uma explicação concreta para a sua origem.
“Sigo esta proibição desde criança, mas, em 2022, enquanto trabalhava num café na Praia dos Coqueiros, pedi um batido cujo ingrediente principal era banana. Após terminar o trabalho e antes de pagar, reparei que havia bananas vermelhas no congelador. Perguntei ao pessoal do café sobre os ingredientes e confirmaram que usaram bananas vermelhas. Apesar disso, não me aconteceu nada.”
Contou ainda que partilhou o episódio com o pai, que lhe respondeu que, sendo acidental, não havia problema. Mas, caso o consumo tivesse sido intencional, já não seria permitido. Até hoje, Sérgio continua sem saber exatamente por que motivo estes alimentos são proibidos pela sua casa sagrada.
Nélia da Costa, da casa sagrada de Wataque, situada no Posto Administrativo de Quelicai, município de Baucau, afirmou que existe uma proibição quanto ao consumo de ervilhas, por se acreditar que causam problemas de saúde como inchaço corporal e flatulência.
“O meu pai disse que não comíamos ervilhas na casa tradicional há muito tempo, e a tradição continua. Tenho um primo que, uma vez, comeu ervilhas e, pouco depois, o corpo e o estômago ficaram inchados. Fizemos um ritual de cura: usámos uma moeda de prata para lhe coçar a língua e, depois, deitámo-la fora. Isso significa deitar fora a dor.”
Uma situação semelhante foi relatada por Adérito Pinto, da comunidade consuetudinária de Boi Aele, no Posto Administrativo de Watulari, também em Viqueque. Contou que a sua irmã mais velha comeu feijão por engano durante uma festa. Quando regressou a casa, começou a sentir dores, surgiram caroços no corpo e teve dores de barriga.
“A minha irmã voltou com febre alta. Tivemos de a levar à casa tradicional para realizar um ritual de cura, conforme a tradição, com orações e palavras sagradas. Só depois de recuperar é que pudemos regressar”, explicou.
Outro exemplo vem de Nicodemos Espírito Santo, descendente da casa tradicional Adasoran, no suco Funar, Posto Administrativo de Laclubar, em Manatuto. As enguias, animal viscoso de água doce que muitos consideram uma iguaria, estiveram durante décadas banidas da sua alimentação. O motivo era uma tradição oral transmitida pela família, que associava este animal a poderes especiais, quase místicos.
“Quando era criança, os meus pais e avós diziam que este animal tem um ‘poder’ especial na nossa tradição — o lisan. Sendo o filho mais velho da família, eu tinha de seguir essa tradição. Acreditava-se que, se alguém comesse enguia, podia sofrer de diarreia, dores musculares, doenças de pele e, acima de tudo, perder os bens — que escorregariam como a pele da enguia”, relatou.
Contudo, um dia decidiu provar enguia e teve uma forte dor de estômago. O pai realizou então um ritual tradicional, que consistia em segurar uma moeda na mão enquanto pedia desculpa aos antepassados e à tradição oral da família. “Depois do ritual, voltei a comer enguia. É saborosa e, desde então, nunca mais tive problemas de saúde nem má sorte.”
Manuel da Silva, de uma casa tradicional em Letiisi, afirmou que, na sua tradição, nenhum alimento é permanentemente proibido, mas existem interdições que variam consoante a época. Por exemplo, o milho e o arroz são proibidos antes da colheita. Realizam-se rituais, como oferendas aos espíritos ancestrais (Matebian), que concedem permissão para o consumo.
“Quando semeamos e a chuva começa a cair, ainda não podemos consumir os produtos. Segundo os relatos antigos, estes alimentos eram muito difíceis de obter, e o milho e o arroz eram considerados essenciais para todos. Por isso, durante o período da plantação e antes da colheita, realiza-se um ritual — semelhante a um carnaval — a nível da aldeia. Só depois é permitido consumi-los. Esta prática mantém-se até hoje, embora com algumas alterações”, explicou.
Manuel continuou a descrever certos alimentos considerados sagrados pelas casas tradicionais, cuja importância tem sido transmitida de geração em geração. Segundo contou, quando uma mulher oriunda de outra casa tradicional — onde determinados alimentos são proibidos — entra na sua casa (por exemplo, através do casamento), realiza-se um ritual para que ela possa consumir os alimentos que antes lhe eram interditos.
“Quando uma mulher se casa com alguém da nossa família e existem alimentos proibidos para ela, realizamos um ritual de bênção ou de partilha com a família da mulher. Oferecemos, por exemplo, uma vaca, uma cabra ou até um porco. Em troca, a nossa família recebe algo da parte deles — geralmente alimentos tradicionais. Depois disso, explicamos que, embora aquele alimento fosse anteriormente proibido, agora já não o é, e a mulher pode consumi-lo livremente”, disse.
Manuel da Silva acrescentou ainda que pessoas de outras casas tradicionais possuem também alimentos proibidos. De acordo com o seu conhecimento e com as histórias transmitidas oralmente, os antepassados identificaram certos alimentos como sagrados, impondo restrições alimentares. Na sua tradição, por exemplo, existe um tabu relativamente à carne de cão, especialmente para as mulheres.
“Na nossa tradição, o tabu é a carne de cão. As mulheres não a podem comer porque, segundo a crença, depois de a consumirem, podem começar a comportar-se como cães — tornam-se mais propensas a discutir, gritar ou faltar ao respeito aos outros”, afirmou.
Perspetiva antropológica: tabus alimentares como expressão espiritual e mecanismo de harmonia social
A antropóloga Ana Carolina de Oliveira explicou que os tabus alimentares, presentes em diversas casas tradicionais timorenses, não devem ser interpretados como sinais de ignorância ou falta de conhecimento. Pelo contrário, são práticas culturais profundamente enraizadas que regulam a relação entre os humanos e o que está para além do humano.
Segundo a especialista, “há várias formas de compreender a proibição de certos alimentos — em algumas casas são permitidos, noutras não. Na antropologia, a origem dessas proibições, incluindo as alimentares, está geralmente ligada à preservação e reprodução da cultura”.
Embora a origem exata dos tabus seja difícil de determinar — mesmo em conversas com anciãos e membros das comunidades, a justificação mais comum é que “sempre foi assim” —, Ana Carolina sublinha que os tabus funcionam como mecanismos de harmonia entre as casas tradicionais. “Estabelecem um equilíbrio nas relações sociais e espirituais entre os grupos.”
A antropóloga lembra que os tabus alimentares são comuns em várias culturas, como nas religiões judaica e islâmica, que proíbem o consumo de carne de porco, ou no hinduísmo, onde a vaca é considerada sagrada. “No Islão, por exemplo, existe uma distinção entre alimentos halal e haram, que regem a relação entre os crentes e o sagrado. É uma forma de manter a pureza espiritual.”
Em Timor-Leste, os tabus não estão necessariamente ligados à religião formal, mas a uma visão espiritual do mundo. “Acredita-se que o respeito pelos tabus evita doenças ou conflitos com os antepassados. Seguir essas interdições é manter uma relação de proximidade e respeito com a ancestralidade”, concluiu.
A antropóloga sublinhou que as proibições sociais desempenham um papel fundamental na organização das sociedades, atuando não apenas na manutenção da coesão social, mas também como instrumentos de gestão coletiva e de construção da identidade individual e coletiva.
“Na perspetiva da antropologia, estas proibições têm uma função social muito importante na estrutura da sociedade. Regulam as relações entre as pessoas e entre estas e aquilo que não é humano, ao longo de um período de tempo muito extenso”, explicou.
Segundo a investigadora, estas práticas contribuem para a perpetuação da ordem social, mesmo quando sofrem transformações. Acrescentou que funcionam também como formas de gestão dos recursos naturais, humanos e simbólicos disponíveis nas comunidades.
“Além da coesão e do respeito, estas práticas representam uma forma de gerir os recursos disponíveis para a reprodução da comunidade ou do grupo. Há ainda outro elemento que considero essencial: o facto de as proibições ou as orientações sobre o que se deve ou não fazer, consoante a época do ano ou o período de um ritual, dizerem muito sobre quem a pessoa é no mundo”, afirmou.
Um dos pontos centrais referidos por Ana Carolina prende-se com o impacto destas práticas na construção da identidade. “Elas reforçam não só a identidade coletiva, mas também uma identidade pessoal. Ao passar por estas proibições, a pessoa percebe-se no mundo e é percecionada pelos outros. Trata-se de uma relação dupla, que define a posição do indivíduo no mundo, esteja ou não relacionada com a religião”, destacou.
A antropóloga acrescentou que estas práticas nem sempre estão ligadas à religião, embora frequentemente dialoguem com dimensões simbólicas profundas. Num mundo marcado por rápidas transformações e processos de desenvolvimento, estas expressões culturais enfrentam, segundo disse, desafios significativos.
“Vivemos numa sociedade onde práticas tradicionais podem ser vistas como irracionais, inclusive por membros da própria cultura. Mas o maior desafio é que não sejam analisadas com uma visão etnocêntrica — aquela que julga o outro a partir dos nossos próprios valores e referências culturais”, alertou.
Para Ana Carolina, é fundamental compreender estas práticas no contexto em que surgem, respeitando a lógica interna de cada grupo. “O mundo é dinâmico e isso aplica-se a tudo. As práticas mudam, sim, mas isso não invalida a sua importância. É preciso um olhar mais atento e menos julgador”, concluiu.


