Em conversa com o Diligente, o profissional de fisioterapia falou um pouco da sua história e das necessidades do sistema de saúde timorense.
O sistema de saúde em Timor-Leste, continua a não conseguir oferecer um tratamento digno à população. Com fatias orçamentais reduzidas para o setor da saúde, inferiores a 10% do Orçamento Geral do Estado (OGE), tem sido claro, aos olhos de todos, que o financiamento não é suficiente. São notórias as falhas do sistema, desde a falta de recursos, sobretudo humanos, nas unidades de todo o país, à falta de equipamentos e de medicamentos.
Uma das grandes carências nos hospitais em Timor-Leste é o serviço de fisioterapia, uma área que se dedica à prevenção, diagnóstico e tratamento de disfunções do movimento e de condições físicas decorrentes de lesões, doenças ou do próprio envelhecimento. Este serviço recorre a um conjunto de técnicas terapêuticas, como exercícios de mobilidade física, massagens, manipulações articulares, eletroterapia e , com o objetivo de restaurar, manter ou melhorar o desempenho da capacidade motora e a qualidade de vida dos pacientes.
Mário Rebelo, 72 anos, é português e está ligado à fisioterapia há mais de 40 anos. Ainda em Portugal, completou o curso de fisioterapia na Fundação Inatel, em Braga. Veio a Timor-Leste em 2015 para visitar a família, acabando por ficar. Chegou a trabalhar numa farmácia e, em 2019, decidiu abrir a sua própria clínica, em Motael. Nos últimos seis anos, diz já ter curado mais de 500 pessoas.
Em entrevista ao Diligente, o profissional falou um pouco da sua história e das necessidades do sistema de saúde timorense.
Pode contar-nos qual foi a sua primeira impressão de Timor-Leste, quando aqui chegou?
A primeira impressão, quando cheguei a Timor-Leste, em 2015, foi um bocado complicada. Fiquei assustado. Tudo era muito desorganizado, tudo muito sujo, também não havia muitos mantimentos nem muita coisa para comer. Agora melhorou bastante. Eu gosto de estar aqui.
Onde trabalhou naquele momento?
Eu vim a Timor-Leste porque tinha cá os filhos e os netos. Entretanto, surgiu a oportunidade de trabalhar numa farmácia e eu aproveitei. Trabalhei lá durante dois anos. Como a farmácia não tinha condições de trabalho, em 2019 resolvi trabalhar exclusivamente em fisioterapia e abri uma clínica, em Motael. Tenho tido bastante sucesso, tenho resolvido muitos problemas de jogadores de futebol, ministros, governantes, entre outros. Vêm aqui também muitas pessoas em recuperação de Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC). Por isso, acho que Timor-Leste precisa mesmo da especialidade de fisioterapia nos hospitais. Mas os governantes não veem isso. E eu queria ajudar, antes de me ir embora, a ficar aqui “alguém com as minhas mãos”: ensinar a trabalhar com as máquinas, como se trabalham os músculos, como é que se põem os ossos no sítio, etc. Timor-Leste não pode ficar sem fisioterapia. Nesse caso, tem de se abrir uma formação, mas tem de haver certas condições. É preciso comprar máquinas. E, claro, haver salários condizentes com as funções. Assim, nessas condições, eu ainda ficaria em Timor-Leste mais um tempinho. Há aí um projeto para os veteranos. Acho que vão abrir uma clínica. Já falaram comigo, a ver se eu estaria interessado em colaborar com eles. E eu disse que sim, agora estou à espera.
Quantas pessoas vêm aqui, regularmente?
Depende. Há dias em que vêm cinco, outros em que passam por aqui sete pacientes, outros dias 10 e outros dias em que não vem ninguém. Depende das pessoas e do que precisam. Já tratei muitas autoridades e atletas. Portanto, muita gente já passou pelas minhas mãos. Desde 2019, já tratei mais de 500 pessoas.
Quando chegou cá, já havia serviços de fisioterapia nos hospitais públicos, ou não?
Quando cheguei cá, soube de uma menina americana, que trabalhava no hospital, mas depois foi-se embora. Que eu saiba, não houve mais nenhum fisioterapeuta no hospital. Então, decidi ajudar o país com os meus serviços, porque sei que as pessoas vão ao hospital e depois vêm aqui. Por exemplo, há pessoas que têm acidentes, de mota ou de carro, e ficam com mazelas, como braços partidos. Até podem ser operadas no hospital, mas precisam de ajuda para recuperar os movimentos, dos braços, das pernas, etc. Então vêm aqui para concluir essa recuperação. Trabalhamos a mobilidade e fazemos tratamento. No caso de entorses, às vezes tenho de colocar o pé novamente no sítio. Os pacientes, aqui em Timor-Leste, ficam muito contentes. Aliás, passam a palavra a outros que têm o mesmo problema. Dizem uns aos outros “vai lá ao fulano que ele trata disso”. E as pessoas vêm cá.
Pode compartilhar algum caso específico que tenha marcado a sua trajetória profissional no país?
O caso mais especial foi o do irmão de um ex-primeiro-ministro. Ele [o paciente] foi a Singapura, para tratar um problema grave. Não conseguia andar, ficou sem massa muscular. Então, em Singapura, os médicos disseram-lhe que não voltaria a andar. Voltaram a Timor-Leste e convidaram-me para ir a casa deles. Fiz umas sessões de terapia ao domicílio e, passado um mês e meio, o homem voltou a andar. Ficou muito contente.
Tive também outros casos complicados, de pacientes a recuperar de AVC. Não conseguiam andar e, agora, estão todos bem. Normalmente, cada sessão custa 30 dólares e dura mais ou menos uma hora. Faço tratamento com correntes elétricas, durante cerca de 30 ou 40 minutos, depende do programa. Depois faço massagem e mobilização (se for o caso). A fisioterapia depende muito do problema. Se for para recuperar de um AVC, as sessões podem-se estender por meses. Se for uma entorse, normalmente basta uma semana de terapia. Para tendinites ou inflamações musculares, costumo fazer de 3 a 5 sessões, depende da extensão da lesão.
Em Timor-Leste, muitas pessoas quando sofrem uma a lesão vão aos curandeiros. Como é que a fisioterapia é recebida pelos pacientes, em comparação com as práticas de medicina tradicional?
Eu não sou contra esse tipo de medicina. Porque há pessoas que trabalham nessa área e sabem o que estão a fazer. O problema surge quando as pessoas fazem isso só para ganhar dinheiro e não sabem aquilo que estão a fazer. Então, fazem muitas asneiras. É dá em cortes de pernas, ou problemas simples que se tornam graves, porque as pessoas não recebem um tratamento adequado. Eu apoio os curandeiros que sabem trabalhar. Também existem em Portugal. Pelo menos, dão um jeito, embora não resolvam tudo porque não têm curso de fisioterapia. Para se ser fisioterapeuta é essencial conhecer bem o corpo humano e é preciso muita prática.
Quais são as suas sugestões para tornar o serviço de fisioterapia mais acessível em Timor-Leste?
Eu já falei com a ministra da Saúde e com o presidente da República para se criar o serviço de fisioterapia nos hospitais de Timor-Leste. Eu já ando a falar nisto há seis anos. Toda a gente diz que é uma boa ideia, mas depois ninguém mexe uma palha, ninguém faz nada. E a coisa não anda para a frente. No meu entender, em Timor-Leste, não consideram a fisioterapia muito importante. Mas muitos pacientes vêm aqui e pedem-me para eu não ir embora (para Portugal) porque ainda precisam de mim. Muita gente já me disse isso. Mas, para ficar aqui, tenho de ter condições de trabalho. Se isso acontecer, eu fico aqui em Timor-Leste mais uns anos para trabalhar e dar formação aos profissionais de saúde. Pelo menos, até me aperceber de que aquilo que posso ensinar já fica na mente de quem está a aprender. Então, nesse caso, eu já me posso ir embora descansado. E eu gostava muito de ajudar Timor-Leste nesse sentido.