Juventude timorense avança com a IA, mas pede ao Governo que não fique para trás

Investigação de Ruda Barbosa sobre a deteção de lombas nas estradas com recurso a técnicas de processamento de sinal e aprendizagem automática, em 2024 / Foto: Departamento de Engenharia Informática - UNTL

Em Timor-Leste, estudantes e jovens programadores desenvolvem soluções de Inteligência Artificial para problemas concretos do país — da agricultura à educação. Mas a inovação esbarra na ausência de investimento, regulação, formação e infraestrutura. Sem ação do Estado, o futuro pode não passar de um protótipo.

Classificar espécies de café, distinguir arroz de erva, detetar doenças nos cafeeiros, controlar a rega com dispositivos Android, operar portões automáticos através do reconhecimento de matrículas de veículos, identificar buracos nas estradas, reconhecer o número do cartão de estudante, contar alunos com recurso a imagens, analisar dados de importação na alfândega, estudar o potencial turístico de locais específicos, detetar padrões de Tais, controlar sistemas elétricos domésticos, prever o nível da água de lagos e avaliar a qualidade da água e dos resíduos — são alguns dos projetos desenvolvidos desde 2019 por estudantes do Departamento de Engenharia Informática da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL).

Ruda Barbosa, programador da UNTL, explicou que estas investigações visam criar soluções práticas para problemas reais em setores como a agricultura, os transportes, a educação, o ambiente e a cultura. “No setor agrícola, por exemplo, desenvolvemos sistemas para detetar doenças nas plantas e melhorar a agricultura inteligente. Nos transportes, trabalhamos no reconhecimento de matrículas para reforçar a segurança rodoviária e monitorizar infraestruturas”, afirmou.

Apesar do avanço dos estudos, Ruda alerta para os desafios da implementação: faltam dados, capacidade de processamento, conectividade, dispositivos adequados e apoio estatal. “Os estudos estão disponíveis para investigadores e programadores. Agricultores ou instituições podem beneficiar, mas é preciso haver formação para usar as ferramentas”, disse.

Um dos projetos em curso está a ser negociado pela ONG Partisipa, com vista à utilização de uma aplicação para monitorizar as estradas. Mas, segundo Ruda, “sem apoio do Estado ou do setor privado, criar aplicações torna-se inútil, porque não chegam a ser utilizadas nem a gerar impacto real na sociedade”.

Na passada segunda-feira, 26 de maio, a Asia Foundation organizou uma consulta pública sobre a ética e o futuro da IA em Timor-Leste. O pró-reitor da UNTL para a Informação, Inovação e Transformação Digital, Frederico Soares Cabral, alertou para a ausência de regulação e partilhou os avanços da universidade, como o estudo que usa a IA para avaliar a qualidade de peixe congelado através da análise dos olhos do animal.

Frederico Soares Cabral concluiu os seus estudos em Inteligência Artificial numa universidade japonesa em 2015. “A IA pode ser aplicada a todos os setores”, afirmou o professor. Na sua tese, desenvolveu um sistema baseado em sensores de acelerómetro instalados em telemóveis para detetar vibrações no interior dos veículos, permitindo identificar irregularidades na estrada. Segundo explicou, esta tecnologia pode ser usada para prever as necessidades de requalificação da rede viária e estimar os respetivos orçamentos.

Cabral referiu ainda preocupações com o plágio académico. Segundo ele, há estudantes que utilizam o ChatGPT para escrever teses. Defendeu a criação de um repositório nacional para controlo de plágio.

Ajito Nelson Lúcio da Costa, jovem engenheiro de dados, desenvolveu um modelo de monitorização digital de resíduos que conquistou o 3.º lugar no Global AI Agents League Hackathon. Lidera atualmente o grupo Lafaek Team AI, que trabalha em soluções tecnológicas com base na IA.

Apesar do entusiasmo, o grupo reforça o apelo: é urgente que o Governo invista e crie uma estrutura que apoie, regule e incentive o uso ético e eficaz da Inteligência Artificial em Timor-Leste.

O país está pronto?

Segundo Ajito da Costa, a prontidão de Timor-Leste depende sobretudo da capacitação dos seus recursos humanos. Aponta como principais limitações a falta de internet fora de Díli, a ausência de um tétum padronizado para integração na IA, a inexistência de centros de dados, os custos elevados, a escassez de profissionais qualificados e a ausência de regulamentação. “Os estudantes estão a pesquisar para oferecer soluções para os problemas locais de saúde, agricultura, saneamento, entre outros”, afirmou.

Frederico Soares Cabral alertou para o ritmo acelerado da evolução tecnológica. “Em 2019, falava-se sobretudo em leitura labial. O ChatGPT nem sequer existia ainda. Hoje, há avanços constantes e rápidos.” O professor lembrou ainda que o Plano Nacional de Digitalização do VIII Governo não contemplava a IA e defendeu uma atualização urgente da legislação, nomeadamente com a aprovação da lei da cibersegurança. “Não podemos esperar por uma lei perfeita, porque a tecnologia avança mais depressa do que a legislação.”

Sobre os desafios no setor agrícola, apontou a dificuldade em registar oficialmente as áreas cultivadas e a produção, a falta de irrigação e o abandono das terras, muitas vezes convertidas em áreas residenciais.

Fernando Ximenes, investigador da área da IA e responsável pela elaboração de um relatório sobre a prontidão de Timor-Leste, alertou para os perigos da desinformação gerada por tecnologias como vídeos hiper-realistas criados por IA, que dificultam a distinção entre conteúdos reais e falsos. “Já houve casos em que pessoas se suicidaram após sugestões de chatbots para travar as alterações climáticas”, referiu.

Destacou ainda a necessidade de leis adaptadas ao contexto timorense. “Há leis internacionais, mas baseadas em valores ocidentais. Precisamos de quadros legais alinhados com a nossa realidade.” Criticou também a incapacidade de plataformas como o Facebook detetarem conteúdos ofensivos em tétum, como músicas que ridicularizam mulheres.

Durante a consulta, jovens e representantes da sociedade civil manifestaram preocupação com as fragilidades do sistema educativo, que pode acentuar desigualdades no acesso à tecnologia e agravar a vulnerabilidade dos mais pobres.

Apontaram ainda riscos como a perda de pensamento crítico devido ao uso excessivo de IA na elaboração de trabalhos escolares, a ausência de leis sobre direitos de autor e a inexistência de legislação para proteção de dados.

Ruda Barbosa conclui que, apesar do potencial da IA em Timor-Leste, o país ainda não está preparado para uma adoção plena. A falta de formação em programação e ciência de dados, o fraco acesso a tecnologia e internet de qualidade — sobretudo nas zonas rurais — e a ausência de políticas públicas impedem um avanço mais sólido. “Sem investimento e estratégia, será difícil aplicar a IA em grande escala nos setores da agricultura, saúde e governação.”

Sugestões para avançar com a IA em Timor-Leste

Para Frederico Soares Cabral, é fundamental a criação de um instituto nacional dedicado ao desenvolvimento da IA, que envolva todos os setores. Os programadores precisam de trabalhar com especialistas de diferentes áreas para garantir que as soluções tecnológicas se adaptam à realidade do país. “Sem uma instituição que regule e promova a literacia digital, o desenvolvimento rápido da tecnologia vai apenas gerar vítimas em Timor-Leste. A literacia sobre IA é urgente.”

Os participantes da consulta “Moldar a IA ética em Timor-Leste” sugeriram ainda incluir a aprendizagem sobre IA e computação nos currículos escolares desde os primeiros anos. Reforçaram a necessidade de legislação para proteger os dados pessoais e assegurar a inclusão digital, tanto nas zonas urbanas como nas rurais.

Ruda Barbosa recomendou ao Governo que invista na infraestrutura da IA, nomeadamente nos recursos computacionais e na conectividade de internet, e que introduza a IA e a ciência de dados nos currículos universitários e nos programas de formação profissional. Defendeu também a criação de um enquadramento legal sobre a ética da utilização da IA, com especial atenção a projetos biométricos, salvaguardando a privacidade e a confiança do público.

O jovem programador sublinhou a importância de parcerias entre o setor público e empresas de tecnologia para fornecer ferramentas, formação e financiamento de projetos em áreas como agricultura inteligente ou gestão de resíduos, permitindo uma implementação em larga escala.

Para além disso, Ruda salientou o papel essencial da sociedade civil na sensibilização da comunidade para os benefícios práticos da IA, promovendo o interesse, a aceitação e a colaboração. “Envolver os cidadãos na criação de soluções com IA é essencial para garantir que estas se adequam às necessidades locais.”

Por fim, incentivou os cidadãos timorenses a informarem-se, a aprenderem mais sobre IA e a participarem ativamente nas discussões sobre o tema, dando feedback a programadores e investigadores, de modo a aprofundar e melhorar as aplicações com base na realidade do país.

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