A decisão de convidar Prabowo Subianto e Eurico Guterres para as celebrações do 49.º Dia da Proclamação da Independência de Timor-Leste, a 28 de novembro de 2024, gerou uma onda de indignação. Associados a episódios de extrema violência durante a ocupação indonésia, os dois nomes reacenderam memórias de um passado marcado por massacres, abusos e sofrimento. Para muitos timorenses, esta escolha representa um insulto às vítimas e ameaça a unidade do país.
O convite feito pelo presidente José Ramos-Horta a Prabowo Subianto, presidente da Indonésia e ex-general do exército, e a Eurico Guterres, líder da milícia AITARAK, para participarem nas celebrações do 49.º aniversário da proclamação da independência é visto como uma afronta por muitos timorenses. Ambos estão ligados a episódios de violência extrema durante a ocupação indonésia (1975-1999).
Prabowo Subianto, ex-general do exército indonésio e antigo comandante da Kopassus (Forças Especiais do Exército Indonésio), esteve diretamente envolvido em operações militares em Timor-Leste. Sob a sua liderança, as forças indonésias foram acusadas de graves violações de direitos humanos, incluindo massacres, tortura e repressão contra a população timorense.
Eurico Guterres liderou a milícia AITARAK (Ação de Integração do Povo), milícia criada em 1999 para combater a independência de Timor-Leste, perpetrando atos de violência extrema, incluindo tortura, assassinatos, destruição de aldeias e deslocação forçada de civis, especialmente no período pós-referendo de 1999.
“Durante o dia, eram forçadas a fazer trabalhos domésticos. À noite, serviam sexualmente a milícia, que incluía mais de 10 homens. É este tipo de ferida que o presidente quer trazer de volta?”
Vítimas e o trauma persistente
As ações violentas durante os 24 anos de ocupação indonésia foram documentadas pela Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR), criada em 2005 para investigar as violações dos direitos humanos ocorridas durante a ocupação indonésia. Embora a CVAR não tenha poder para aplicar sanções, representou um passo simbólico crucial para a reconciliação entre os dois países.
De acordo com a CAVR, cerca de 250 mil timorenses morreram ou desapareceram entre 1975 e 1999. Entre as vítimas, destacam-se milhares de mulheres que sofreram abusos graves.
Manuela Leong Pereira, diretora da ACbit (Associação Chega ba ita), entidade que trabalha para apurar as vítimas da guerra de 1975-1999, partilhou relatos de mulheres capturadas e torturadas. “Durante o dia, eram forçadas a fazer trabalhos domésticos. À noite, serviam sexualmente a milícia, que incluía mais de 10 homens. É este tipo de ferida que o presidente quer trazer de volta?” Muitas continuam a viver com traumas profundos e sem acesso a justiça ou reparação.
Manuela criticou o presidente por ignorar o sofrimento das vítimas: “Há mulheres cujos maridos se divorciaram por vergonha de elas terem sido abusadas. O presidente sente-se bem com tudo isto?”
“Trabalho e interajo diretamente com as vítimas, conheço o seu estado. Algumas delas fecharam-se em casa, nunca saem e só aceitam encontrar-se e falar comigo.” Destacou ainda que o convite feito a Eurico Guterres pelo presidente apenas reforça o orgulho do ex-líder da milícia, levando-o a pensar que Timor-Leste tem medo dele, apesar de todos os abusos que cometeu contra mulheres.
“Nunca pense que a voz do povo não tem valor, porque este país foi fundado pela luta do povo”
A AJAR (Asean Justice and Rights) também reagiu, com a ativista Amandina Maria Helena da Silva a sublinhar que a chegada de Eurico Guterres é inoportuna, dado o trauma ainda presente nas vítimas da invasão.
A ativista destaca que a chegada de Eurico Guterres pode agravar os conflitos entre os timorenses, reforçando a importância de dar prioridade à reconciliação interna e garantir justiça às vítimas, especialmente às mulheres combatentes.
“O presidente foca-se mais na sua popularidade do que no bem-estar do povo”, criticou, acrescentando que a liberdade e igualdade para as mulheres são essenciais para o progresso do país. Amandina aponta ainda a necessidade de estabelecer boas relações com a Indonésia devido à dependência económica, “mas condeno o governo por não investir adequadamente em setores estratégicos para o desenvolvimento”, sublinhou.
Questionou ainda a verdadeira autonomia de Timor-Leste, considerando a dependência do país em relação a outras nações. “Será que Timor-Leste é realmente um país?” indagou, referindo-se à falta de soberania na produção interna.
Por fim, Amandina defende que as reações das pessoas nas redes sociais são legítimas e devem ser ouvidas, pois expressam o que o povo sente e aquilo que considera prioritário. Ela adverte o presidente para não tentar silenciar essas vozes, pois foi graças à luta e determinação do povo que o presidente existe. “Nunca pense que a voz do povo não tem valor, porque este país foi fundado pela luta do povo”, concluiu.
“Reforçar os laços de amizade não pode ignorar a justiça”
Reações da sociedade e dos veteranos
Nas redes sociais, muitos expressaram descontentamento, considerando um convite uma provocação que ignora o sofrimento do povo timorense e desrespeita a memória das vítimas. Para veteranos da luta pela independência, como João Coque, o convite é “um insulto” que viola a memória histórica e ameaça a coesão social.
João Coque, veterano da luta pela independência de Timor-Leste e figura amplamente reconhecida, especialmente entre aqueles que resistiram à ocupação indonésia, destaca-se como uma das principais vozes críticas em relação a figuras ligadas à repressão desse período, como Eurico Guterres.
Coque tem enfatizado a importância da memória histórica e da justiça para as vítimas dos abusos cometidos durante a ocupação, refletindo o ressentimento de muitos timorenses perante a impunidade desses crimes. O veterano considerou o convite feito a Eurico Guterres como um insulto ao povo de Timor-Leste, que ainda carrega as dolorosas memórias da invasão, bem como às famílias que perderam entes queridos nesse período.
O veterano alertou o presidente para a necessidade de se focar em questões urgentes, como a situação das populações mais desfavorecidas, que continuam a viver em condições de sofrimento sem qualquer previsão de melhoria. Coque sublinhou ainda que, caso Eurico Guterres fosse recebido em Timor-Leste, a responsabilidade pela sua segurança recairia sobre o presidente. Segundo ele, muitos soldados e polícias que perderam familiares durante a ocupação continuam a sofrer, o que tornaria difícil garantir a segurança de Guterres, dado o sentimento de injustiça e a dor ainda presentes entre a população devido à violência perpetrada pelas milícias AITARAK.
Por outro lado, João Soko, membro de uma milícia pró-indonésia atualmente residente em Kupang, na Indonésia, criticou as declarações de Coque. Num vídeo publicado no Facebook, Soko afirmou que a terra de Timor-Leste não pertence apenas a Coque, mas também a ele, pois nasceu e cresceu no país. Soko manifestou-se contra a posição de Coque em rejeitar a visita de Eurico Guterres, argumentando que Guterres não veio por iniciativa própria, mas a convite do presidente de Timor-Leste, a figura mais importante do país. Segundo Soko, Coque não tem o direito de impedir a visita de Guterres.
David Dias, combatentes da resistência e membro oposição, fez duras críticas ao presidente pela decisão de convidar Eurico Guterres para as celebrações do Dia da Proclamação da Independência. Em declarações aos jornalistas, David Dias afirmou que Eurico poderia vir por sua própria vontade, sem precisar de convite, já que as relações entre Timor-Leste, Atambua e Kupang já estão a melhorar.
Afirmou ainda que “reforçar os laços de amizade não pode ignorar a justiça”, especialmente quando muitas vítimas ainda não receberam a reparação que merecem.
David recordou ainda que, durante a guerra, o presidente estava no estrangeiro e, por isso, não conhece verdadeiramente o sofrimento do povo timorense. Afirmou que o presidente não pode tomar decisões sem considerar o que o povo está a viver e declarou que convidar alguém acusado de crimes e controvérsias para o Dia da Independência apenas fomentará conflitos entre a população. “Um presidente não deveria agir desta forma”, concluiu, criticando a decisão como uma atitude que enfraquece a unidade do país.
A defesa de Ramos-Horta
O presidente José Ramos-Horta justificou o convite como parte de um esforço para reforçar a reconciliação e os laços com a Indonésia, especialmente com comunidades em Kupang e Atambua.
Para Ramos-Horta, a reconciliação com a Indonésia é crucial para a estabilidade e o progresso do país.
Lere Anan Timur, antigo general das F-FDTL, defendeu o gesto presidencial, considerando-o uma iniciativa legítima para promover a paz e a cooperação regional.
“O presidente não é um rei, nem o cargo é uma propriedade privada pertencente apenas a Ramos-Horta”
Críticas à reconciliação sem justiça
Armindo Moniz, académico, criticou a escolha de Ramos-Horta, argumentando que o presidente deveria dar prioridade à justiça para as vítimas, em vez de desviar a atenção para gestos simbólicos. Se realmente quisesse promover a reconciliação, a única pessoa que deveria ser convidada diretamente seria o presidente da Indonésia, e não figuras secundárias como Eurico. Na sua opinião, Eurico não tem poder sobre a política da Indonésia, sendo apenas um combatente que, neste momento, se encontra em Kupang.
Segundo ele, a reconciliação genuína não depende apenas de ações políticas, mas de um compromisso em garantir justiça e reparação. “A forte reação do povo de Timor-Leste não significa que rejeite a paz, mas que pede justiça para as vítimas de violência, para aqueles que morreram, desapareceram ou ainda sofrem”.
Armindo sublinha que não se deve pensar que o povo de Timor-Leste odeia o presidente, mas este precisa de compreender que os 24 anos de sofrimento não são meros números. São um registo de feridas, doenças, mortes, lágrimas, violações, mutilações e desaparecimentos. Para Armindo, as pessoas responsáveis pelas violações dos direitos humanos não devem ser ignoradas, mas sim levadas à justiça.
Em resposta à declaração do presidente, que afirmou “não interfira no que eu faço”, Armindo recordou que o cargo de presidente é público e, como tal, está sujeito a críticas. “O presidente não é um rei, nem o cargo é uma propriedade privada pertencente apenas a Ramos-Horta”, frisou. A reconciliação, conclui Armindo, não é uma questão pessoal do presidente, mas uma responsabilidade de toda a sociedade.
O debate político
A controvérsia gerou divisões entre os líderes políticos. Mari Alkatiri, líder da FRETILIN, acusou o Presidente de agir de forma unilateral e sem respeitar os processos coletivos de reconciliação. “Para que a reconciliação seja genuína, o presidente deve seguir um processo justo e adequado, algo que não está a fazer.”
Alkatiri considera que Ramos-Horta age de acordo com os seus próprios interesses e desejos, sem seguir um processo estruturado. Para ele, a reconciliação não deve depender da vontade de uma única pessoa, mas sim de um processo coletivo e justo, que respeite a vontade do povo.
Horta aconselhou o líder da FRETILIN a manter-se calado e a concentrar-se no partido, uma vez que este tem vindo a perder sucessivamente nas eleições gerais. O presidente afirmou ainda que a derrota e o enfraquecimento do partido ocorreram porque os deputados e líderes estavam demasiado ocupados com outros assuntos.
Nao pode haver fraternidade sem haver primeiro JUSTICA. Os familiares dos massacrados precisam de lhes ser dada a FRATERNIDADE tao apregoada.
Neste dia vou vestir de preto (luto) em protesto. Morreu o bom senso e o respeito por todos os que faleceram para que TL fosse independente.
“A FRATERNIDADE COMECA EM CASA”
Ze Enlutado
Na giria futebolistica este manager do Clube Nacional de TL, quer contratar jogadores que metam golos na propria baliza dando assim vitoria ao clube adversario.
Esta na hora de contratar um “Amorim”.