Em conversa com o Diligente, a diretora-executiva do Programa de Monitorização do Sistema Judiciário (JSMP, em inglês) detalhou sobre as interferências dos chefes de Governo e de Estado em decisões judiciais no país. Também falou a respeito dos desafios e avanços do setor nos últimos 22 anos e informou que os crimes mais comuns em Timor-Leste – violência doméstica e violação sexual – têm como alvo as mulheres.
Um sistema de Justiça eficiente, independente e acessível é um dos principais fatores para garantir o funcionamento da democracia de um país. Em Timor-Leste, nação com 22 anos de independência e aproximadamente 1,3 milhões de habitantes, a quantidade de profissionais que atua na área jurídica ainda não é suficiente para atender todos os casos. Além disso, prevalece ainda uma falta de sensibilidade e competência de alguns juízes para as questões de violência baseada no género. Esses são os apontamentos de Ana Paula Marçal, 42 anos, diretora-executiva do Programa de Monitorização do Sistema Judiciário (JSMP, em inglês) em Timor-Leste.
Constituído em Díli, em 2001, o JSMP é responsável por fazer um acompanhamento e análise da Justiça no país.
Natural de Same, Ana Paula Marçal estudou direito na Universidade UNDANA, em Kupang, na Indonésia. Desde 2020, desempenha funções como diretora-executiva do JSMP, conciliando as atividades com os trabalhos de advocacia à população, sobretudo para os grupos mais vulneráveis, relativamente ao acesso à Justiça.
Em conversa com o Diligente, Ana Paula Marçal destaca a importância dos tribunais, ao oferecerem um atendimento acessível a todos os cidadãos e ao aumentarem os recursos humanos no sistema judiciário timorense.
Conte-nos um pouco do vosso trabalho e de como a JSMP atua?
A JSMP é uma organização da sociedade civil, criada em 2001, inicialmente com o papel de monitorizar o trabalho do Tribunal Ad Hoc em Jacarta, na Indonésia, relativamente aos crimes graves ocorridos em Timor-Leste, durante o período da ocupação indonésia. Depois de terminar esta missão, continuámos a monitorizar os trabalhos e o funcionamento dos tribunais municipais e de primeira instância em Timor-Leste. Além disso, supervisionamos os processos criminais e civis registados nos tribunais.
As principais atividades passam por monitorizar todo o funcionamento dos tribunais e do Parlamento Nacional. Damos assistência legal aos grupos vulneráveis, principalmente as mulheres, crianças e pessoas com deficiência. Fazemos ações de sensibilização sobre as leis, para a população, e as maneiras de aceder à Justiça. Além disso, assessoramos juízes, dando conta das nossas descobertas e conclusões dos estudos desenvolvidos na sociedade timorense.
Quantos juízes há em Timor-Leste atualmente? Este número é suficiente para atender todas as demandas? E em relação aos tribunais? Os tribunais estão bem distribuídos pelo país ou concentram-se maioritariamente na capital?
Sofremos, desde a restauração [da democracia, a 20 de maio de 2002], com a limitação de recursos humanos, em termos de qualidade e quantidade. Temos o Centro de Formação Jurídica e Judiciária, que já ajudou a produzir mão-de-obra para este setor. No entanto, o número de profissionais não chega para os casos registados nos tribunais. Neste momento, temos cerca de 30 juízes nos tribunais, temos mais de 30 procuradores, 30 defensores públicos e 15 advogados privados que estão a prestar serviço nos tribunais. Mas, de ano para ano, o número de casos aumenta e, às vezes, os tribunais registam até três mil casos. Isto, não contando com os casos pendentes.
Devemos equilibrar os nossos profissionais de acordo com a quantidade de casos. Isso não pode influenciar a qualidade dos serviços. Os juízes até podem ser bem qualificados, mas, com um elevado número de casos exigentes, são obrigados a tomar decisões rápidas e esquecem-se de confirmar todas as partes potencialmente envolvidas num caso. Por isso é que, muitas vezes, as pessoas questionam as decisões, por considerarem que não são devidamente detalhadas.
Em relação aos tribunais, há quatro [distritais]: em Díli, Baucau, Suai e Oécusse, além do Tribunal de Recurso [na capital]. No ano passado, saiu a Lei da Organização Judiciária, que substitui o regulamento da UNTAET [Administração Transitória das Nações Unidas, que fez a gestão administrativa de Timor-Leste entre 1999 e 2002]. A nova Lei pretende melhorar o sistema de Justiça e alargar a Primeira Instância aos municípios. Observámos que o número de casos está a aumentar, então é necessário encontrar mais soluções. Na Lei da Organização Judiciária é dito que a jurisdição do Tribunal de Primeira Instância deve chegar a nove municípios.
No entanto, temos ainda de reconhecer que, com o atual número de juízes, será que temos recursos humanos suficientes para quando alargarmos os tribunais aos outros municípios? Por isso, uma das nossas recomendações vai para o Centro de Formação Jurídica, que deve continuar a funcionar e a formar mais profissionais.
Em linhas gerais, como é que a JSMP avalia a atuação dos juízes em Timor-Leste?
Antigamente, era sabido que os juízes não prestavam um bom atendimento, no acompanhamento de casos e das vítimas. Agora, já há , mas ainda é preciso melhorar. É necessário apostar na formação. A formação é importante para melhorar a capacidade dos profissionais quanto aos processos judiciais, sobretudo em casos de violência baseada no género ou contra pessoas vulneráveis.
Existem casos que envolvem pessoas com deficiência e que requerem um atendimento especial. Outros, que envolvem jovens, menores, por exemplo, também são casos sensíveis. Deparámo-nos com situações de uso abusivo da linguagem, ou recurso a expressões com que os envolvidos no processo não estavam familiarizados. Além disso, o uso da língua portuguesa no setor da Justiça (não significa que o JSMP não goste desta língua) pode ser um entrave à compreensão dos cidadãos. Se as notificações forem escritas em português, como é que vão perceber? As decisões e acórdãos também são escritos em português. Se querem manter o português, sabendo que os nossos magistrados têm tempo para explicar ou traduzir, tudo bem. Ainda assim, na nossa observação, não há uma explicação clara para as pessoas envolvidas nos casos.
Fizemos, no ano passado, uma pesquisa sobre o nível de satisfação das pessoas em relação ao atendimento nos tribunais. A maioria não está satisfeita e muito se deve à falta de explicação detalhada sobre as decisões do tribunal.
Mesmo que não se tenha passado com uma ou outra pessoa, sabe-se que os problemas existem, através de situações que aconteceram com familiares, vizinhos ou colegas. A demora é um dos fatores recorrentes, chegando a acontecer situações de se chegar a uma audiência em tribunal e os juízes cancelarem o julgamento por incumprimento de prazos.
Da nossa parte, agradecemos ao tribunal, sobretudo o Ministério Público, que nos colocou no sistema judicial, dando-nos a oportunidade de trabalhar com assuntos que envolvem mulheres e crianças e na elaboração dos manuais de investigação da violência baseada no género. Além disso, ao expormos a questão da linguagem para pessoas com deficiência, pretendemos que os tribunais passem a ter tradutores de linguagem gestual. Uma outra mudança é que, no julgamento de casos que envolvem as crianças, os juízes já não precisam de vestir roupas pretas, nem assumir uma posição austera, para não assustarem ou intimidarem as crianças, não condicionando os seus depoimentos. Devem vestir roupas normais e conversar em grupo, utilizar uma linguagem adequada e acessível às crianças, para que se sintam confortáveis. Queremos que o sistema judiciário seja confortável para todas pessoas que precisem de aceder à Justiça.
Em alguns casos, chega a ser gravíssimo o modo como o processo é conduzido. Um exemplo de um caso em concreto, de violência doméstica: na altura, um marido usou um objeto cortante e apontou à cara da sua mulher. Por sorte, ela conseguiu escapar. Esta situação seria motivo para tentativa de homicídio, uma vez que o homem usou um objeto cortante para tentar tirar a vida da mulher. Mas, só depois de o assunto ter sido abordado pela JSMP é que o tribunal reconheceu que o caso era efetivamente uma tentativa homicídio. Recomendamos que, para qualquer pessoa que tenha a intenção de tirar a vida a outra pessoa, a pena seja pesada.
O acesso à Justiça não é garantido apenas pelas boas leis que temos, ou pelos muitos profissionais que possamos vir a ter, mas sim pela qualidade do atendimento. Podem memorizar todas as leis, mas a forma como lidamos com os processos, que envolvem pessoas, [ainda] não é boa. E, com isso, os cidadãos perdem a confiança na Justiça.
Que tipos de apoio é que a JSMP concede aos cidadãos, quanto ao acesso à Justiça de forma eficaz e justa?
Temos uma unidade que presta serviço de assistência às mulheres e crianças. Muitas vezes, as pessoas apresentam casos de violência doméstica ao nosso departamento. Depois, colaboramos com a Rede Feto e conduzimos as vítimas para a Uma Mahon. O nosso foco é a violência baseada no género, com especial atenção para os casos em que há suspeitas de violação ou de violência sexual. As pessoas podem contactar a nossa equipa e daremos toda a assistência legal que for necessária.
Quais as punições aplicadas aos magistrados que cometem irregularidades nas suas funções? No ano passado ou neste ano, houve algum juiz que tenha sido punido?
Não pensem que os juízes não podem ser punidos. Se não seguirem o seu papel ou não atenderem bem os casos, tudo isso pode fazer com que a sua carreira não progrida. Pedimos que as sanções sejam rigorosas, para mudar as suas atitudes, mas tudo depende da gravidade dos seus erros.
Circularam informações a dizer que alguns magistrados foram suspensos das suas funções e ainda não sabemos quais as razões. Porém, acreditamos que pode ter sido por terem cometido erros. Pedimos ainda profissionalismo aos juízes, para que não caiam em erros que comprometam o seu trabalho. Se houver situações suspeitas, de serviços ou atendimentos que não lhes agradem, falem uns com os outros e não fiquem calados.
Quais os crimes mais comuns julgados nos tribunais em Timor-Leste?
Não conseguimos contabilizar os casos de todos os tribunais no país, porque não temos recursos humanos para isso. Observámos que, num ano, deram entrada mais de 700 casos de crime nos tribunais de Baucau, Suai, Díli e Oécusse. A violência doméstica é o tipo de crime com mais ocorrências e, logo a seguir, a violação sexual.
Cerca de 98% dos autores da violência doméstica são homens, sendo a dependência económica da família em relação à figura uma das causas deste tipo de crime. Preocupamo-nos com esta situação. Na verdade, a casa deveria ser um espaço seguro para os membros da família, mas torna-se um inferno para muitas mulheres e crianças.
Recentemente, um cidadão australiano foi condenado a 11 anos de prisão por abusar sexualmente de uma menor durante cinco anos. No entanto, o Tribunal Judicial de Primeira Instância de Díli não aplicou nenhuma medida de coação até que o processo transite em julgado, mesmo diante do evidente risco de fuga do condenado. Como avalia esta situação?
Estamos preocupados com isso e é uma das coisas em que precisamos [o sistema judicial] de melhorar. Os recursos demoram muito tempo. Em relação a este caso, o advogado apresentou recurso, mas não sabemos quando é que o Tribunal de Recurso vai tomar uma decisão final. A lei permite o pedido de recurso, mas precisamos de tratar o caso com efetividade. Não podemos demorar muito tempo e dar margem ao suspeito para fugir.
Considera que em Timor-Leste há influência do poder político no julgamento de casos que envolvem os “Ema Boots”? Quais as consequências para o funcionamento do setor justiça no país?
Antigamente havia intervenção direta, mas agora há muitas intervenções indiretas. Como o caso de Emília Pires [condenada por participação económica em negócio e indultada pelo presidente da República, José Ramos-Horta, em dezembro de 2023], há uma intervenção do poder político, mas os juízes continuam firmes nas suas decisões. É um caso que já não é segredo, uma vez que todas as pessoas já sabem.
Outro caso é o das sete casas em Becora. O Tribunal já tomou uma decisão [de reintegração de posse], mas não a podem executar, pois o atual primeiro-ministro, Xanana Gusmão, foi ao terreno defender os moradores e impedir que a decisão fosse aplicada.
Estas situações fazem com que os juízes dos tribunais fiquem desmotivados. Uma pessoa tem uma posição num órgão soberano e a sua fala é enfraquecida pela voz de outra pessoa. Os líderes devem valorizar a capacidade dos tribunais, uma vez que muitas pessoas se sentem satisfeitas com o seu trabalho.
O Governo, em 2023, criou o Grupo de Trabalho de Reforma da Justiça. O que é que precisa de ser alterado mais urgentemente? Qual o ponto de situação desta iniciativa?
Já chegou o tempo de melhorar os serviços públicos no país, sobretudo o setor da Justiça. O grupo é liderado pela ex-ministra da Justiça, Lúcia Lobato, que tem conhecimento para conduzir o processo. No entanto, já observámos que as pessoas que integram a sua equipa são de países estrangeiros e podem não ter um conhecimento profundo do contexto de Timor-Leste.
Tivemos de aceder, não oficialmente, ao relatório do Grupo de Trabalho de Reforma da Justiça, submetido ao primeiro-ministro, Xanana Gusmão. Na nossa observação, o que é mais urgente para resolver é aumentar o número de profissionais do setor judiciário – defensores, juízes, procuradores e oficiais de justiça. O Governo tem de continuar a dar formação aos juízes, para garantir a qualidade dos recursos humanos. A alocação do orçamento para o setor judiciário deve ser uma prioridade, uma vez que alguns tribunais não têm materiais para apoiar os serviços.
Outra coisa diz respeito à necessidade de se alterar as leis que já não se refletem na situação de Timor-Leste, as legislações da violência doméstica e do Código Civil, que apenas reconhece a religião católica. Devem também desenvolver a lei dos órgãos de advocacia, para garantir serviços justos aos defensores públicos e privados.
O Grupo de Trabalho de Reforma da Justiça já apresentou as recomendações ao primeiro-ministro e vai manter as apresentações no Conselho de Ministros. A equipa deve continuar a partilhar o relatório com as entidades que atuam na Justiça, para podermos contribuir com ideias construtivas.
É possível identificar alguns avanços no sistema judicial em Timor-Leste desde a restauração da democracia? Se sim, quais?
Há muitos avanços e progressos no setor da Justiça. Antes não chegávamos a ter 15 juízes, mas agora já temos mais de 30 e bem qualificados. O Governo está a construir o novo edifício do Tribunal de Primeira Instância, em Díli, e nos outros municípios. Antes usávamos as leis do Código Civil e Penal da Indonésia, mas agora já temos a nossa própria Lei.
Os juízes estão mais sensíveis para os casos que envolvem grupos vulneráveis, como as crianças, mulheres e as pessoas com deficiência. No entanto, precisamos de traduzir as leis para tétum, para ajudar todas as pessoas, sobretudo quem tem dificuldade em compreender as normas aplicadas no país.