Mais de mil casos em dois anos: violência contra mulheres e crianças continua a marcar Timor-Leste

Lançamento do Relatório Anual referente ao período 2022-2023/Foto: Diligente

Entre 2022 e 2023, mais de 1.200 mulheres, crianças e jovens procuraram ajuda legal em casos de violência doméstica, sexual ou tráfico humano. A ALFeLa alerta: a desigualdade de género e a cultura patriarcal continuam a alimentar um ciclo de abusos e impunidade.

Em Timor-Leste, a violência contra mulheres e crianças não abranda: só entre 2022 e 2023, a Asisténsia Legal ba Feto no Labarik (ALFeLa) acompanhou mais de 1.200 casos, a maioria de violência doméstica e sexual. O novo relatório da organização denuncia uma realidade que continua a pôr em risco vidas e direitos.

A ALFeLa realizou na passada sexta-feira, 15 de agosto, no Hotel Timor, o seu encontro anual, onde apresentou o Relatório Anual referente a 2022-2023. O documento revela que os casos de violência contra mulheres e crianças continuam a aumentar em Timor-Leste, confirmando que a violência baseada no género permanece como uma das principais violações dos direitos humanos no país.

Segundo os dados, a organização prestou assistência legal a 1.202 casos no período em análise. 60% eram de violência doméstica, 22% de violência sexual – incluindo abuso de menores e incesto -, e 15% estavam relacionados com tráfico humano ou questões civis, como pensão de alimentos e guarda de filhos. Do total de vítimas, 1.170 eram mulheres e meninas, 30 rapazes e duas pessoas transgénero.

A diretora executiva da AlFeLa, Marcelina Amaral, denunciou que muitas mulheres e crianças continuam a viver numa realidade marcada pela violência e pela discriminação. Segundo explicou, as situações começam muitas vezes ainda na infância, dentro das próprias famílias, e são reforçadas por uma sociedade que normaliza comportamentos violentos como se fossem métodos de educação.

A responsável da ALFeLa destacou que os casos de violência baseada no género continuam a dominar o sistema de justiça formal timorense. “Esta situação acontece devido a fatores socioculturais e à persistente desigualdade entre homens e mulheres, que afetam ainda mais pessoas com deficiência e membros da comunidade LGBTQIA+”, afirmou.

Com base na experiência da organização em 2022-2023, a diretora reconheceu que, embora muitas vítimas tenham conseguido chegar ao sistema de justiça, grupos mais vulneráveis ainda enfrentam medo e desconfiança no acesso à justiça. Entre os principais impedimentos, apontou a pobreza, a vulnerabilidade social e a cultura patriarcal, que continua a conceder privilégios aos homens, tanto dentro de casa e na sociedade, colocando mulheres e crianças em risco permanente.

Apesar de 91% dos casos terem sido encerrados com decisões formais — o que demonstra algum avanço no funcionamento do sistema de justiça —, Marcelina salientou que muitos processos não trazem satisfação plena às vítimas. O problema, segundo ela, não está na qualidade das decisões judiciais, mas sim na falta de recursos humanos. “O número reduzido de juízes e procuradores é insuficiente para lidar com a grande quantidade de casos”, alertou.

Outro dado preocupante é que parte das vítimas não conseguiu concluir o processo: 5% perderam o contacto com a ALFeLa, muitas vezes por mudança de residência, 3% desistiram e 1% já recebia apoio de outras instituições. Estes números, segundo a organização, revelam falhas na continuidade do atendimento e na proteção das vítimas mais vulneráveis.

Entre os beneficiários, encontravam-se também 36 pessoas com deficiência — física, intelectual, de comunicação ou psicossocial —, que enfrentam barreiras acrescidas no acesso à justiça. Nestes casos, a ALFeLa atuou em colaboração com o Ministério da Solidariedade Social e Inclusão (MSSI), que prestou apoio humanitário a cerca de 700 clientes.

Para Marcelina Amaral, o trabalho da organização vai além do apoio jurídico. “A justiça só é possível quando caminha lado a lado com assistência social e humanitária, garantindo dignidade e uma verdadeira recuperação às vítimas. Ainda assim, o cenário exige mudanças mais profundas. A violência continua a ser uma realidade quotidiana para muitas mulheres e crianças, e enquanto a sociedade e o Estado não enfrentarem as raízes desta desigualdade, os números não vão diminuir”, afirmou.

Entre 2022 e 2023, a ALFeLa também desenvolveu ações de educação legal e capacitação institucional. Ao todo, 1.651 pessoas beneficiaram de formações sobre violência baseada no género, acesso à justiça, tráfico humano e direitos da família, incluindo 59 pessoas LGBTQIA+. Os participantes incluíram estudantes, líderes comunitários, membros da polícia – nomeadamente da Unidade de Proteção à Mulher – VPU – e membros da comunidade em geral. As atividades decorreram em dez municípios: Ainaro, Bobonaro, Covalima, Díli, Ermera, Lautem, Manatuto, Manufahi, Oé-Cusse e Viqueque.

No mesmo período, a organização participou também na elaboração da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 6/2023), já promulgada e em fase de implementação, e colaborou na redação de um relatório-sombra submetido ao Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), que recomendou ao Estado timorense o reforço da igualdade de género e da proteção dos direitos humanos.

A ALFeLa integra ainda comissões ministeriais, incluindo a da Secretaria de Estado para a Igualdade, e é membro ativo na luta contra o tráfico humano, liderada pelo Ministério da Justiça.

Durante o encontro, a Adjunta da Procuradora-Geral da República, Angelina Saldanha, elogiou o contributo da organização, sublinhando que “o trabalho da ALFeLa contribui diretamente para garantir que mulheres e crianças vítimas de violência tenham acesso à lei, à justiça e aos tribunais, rompendo o ciclo da violência e protegendo-se contra abusos”.

Segundo Angelina Saldanha, apesar da legislação existente, como a Lei n.º 7/2010 Contra a Violência Doméstica, os crimes de violência doméstica, abuso sexual de menores e crimes sexuais continuam a afetar sobretudo mulheres e crianças.

“Dados do Relatório de 2024 do Ministério Público confirmam a prevalência destes crimes, revelando que o fenómeno da violência baseada no género se manifesta de diversas formas e permanece fortemente presente na sociedade timorense”, acrescentou.

Para a magistrada, esta realidade representa uma degradação social que precisa de ser enfrentada com urgência. A mudança, defendeu, deve começar nas atitudes dos cidadãos, promovendo uma condenação social firme contra práticas discriminatórias.

Apelou ainda a mais investimento em ações de prevenção, sobretudo junto da juventude, para quebrar o ciclo da violência, proteger crianças expostas a ambientes familiares violentos e sensibilizar agressores para comportamentos não violentos. Sublinhou também a necessidade de criar  fundos estatais para apoiar vítimas que não recebem indemnizações por incapacidade financeira dos agressores.

Governo reforça apoio às vítimas e apela à cooperação com a sociedade civil

O Governo timorense reafirmou o seu compromisso com a promoção dos direitos humanos e com o apoio a instituições de solidariedade social que trabalham junto das populações mais vulneráveis. A vice-ministra da Solidariedade Social e Inclusão, Céu Brites, destacou o papel central da ALFeLa, elogiando a sua longa trajetória no apoio legal e humanitário a mulheres, crianças e pessoas com deficiência vítimas de violência e exclusão social.

“A violência baseada no género é uma violação dos direitos humanos que ainda persiste em várias partes do mundo, incluindo em Timor-Leste”, alertou a governante, sublinhando a importância do relatório anual da ALFeLa como fonte de evidência concreta sobre o impacto das ações da organização.

Céu Brites apelou às instituições públicas e privadas para que utilizem os dados do relatório como base para o planeamento de políticas e estratégias de proteção social. Considerou ainda que a atuação da ALFeLa é “crucial” para o reforço do sistema de apoio às vítimas e para a promoção dos direitos fundamentais.

Como parte deste compromisso, a vice-ministra anunciou que, em 2025, o MSSI apoiará financeiramente 38 organizações certificadas, entre as quais a ALFeLa. Defendeu também que a cooperação entre o Governo e as organizações da sociedade civil é essencial para garantir proteção legal, inclusão social e apoio humanitário às comunidades em situação de risco.

Também presente, o diretor-geral da Secretaria de Estado para a Igualdade e Inclusão (SEII), Armando da Costa, sublinhou que relatórios como o da ALFeLa são essenciais para formular políticas públicas assentes em dados concretos. “Precisamos de evidências reais para tomar decisões informadas. Documentos como este promovem transparência e responsabilização, e orientam a ação governamental”, afirmou.

Armando da Costa destacou ainda que o compromisso da SEII com os direitos das mulheres e das crianças está alinhado com a Constituição de Timor-Leste e com os tratados internacionais de que o país é signatário. Enfatizou a necessidade de garantir às mulheres e raparigas o acesso à informação sobre os seus direitos e de alinhado a sua participação ativa em todas as esferas da sociedade.

“Não podemos continuar a ver as mulheres apenas como beneficiárias de proteção, mas reconhecê-las como líderes com voz ativa na construção de um país mais justo e inclusivo”, concluiu.

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  1. wow…the number of cases is very high…the women need protection and everyone of them must have the courage to come forward with their case.

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