Quando ver é mais do que olhar: a tradição do Fase Matan em Timor

"Cresce com dedicação ao trabalho. Aprende a limpar a tua casa, a preparar a terra e a plantar o teu próprio alimento"/Foto: Diligente

Segundo a crença dos timorenses, a tradição do Fase Matan — que significa literalmente “lavar os olhos” — é realizada para garantir que, no futuro, a criança desenvolva uma visão clara e apurada. Além disso, marca simbolicamente a libertação da mãe, permitindo-lhe voltar a sair de casa e usar água fria. Contudo, esta prática começa a rarear na sociedade atual, levando os praticantes a apelar à preservação deste ritual ancestral.

O sol ainda mal iluminava as montanhas de Dare, aldeia situada a cerca de dois quilómetros de Díli. Eram seis da manhã. Crianças corriam e brincavam sob tendas improvisadas; mulheres mais velhas preparavam comida nas cozinhas; e os homens estendiam um tapete à entrada da casa. As famílias começavam a juntar-se para dar início à cerimónia.

Sobre o tapete, foram colocados dois pratos cheios de água, folhas, um anel e uma moeda de dez centavos. Ao lado, também estavam a noz de areca e cigarros tradicionais. Dentro da casa, a tia Rosa de Aleixo trazia às costas um cesto, uma alavanca e uma catana, enquanto o tio Virgílio Fátima carregava o bebé recém-nascido, segurando um caderno e um lápis nas mãos.

Pouco depois, saíram do quarto. Lá fora, todos os familiares se levantaram para os acompanhar, caminhando lentamente até à esteira, colocada a cerca de três metros de distância. Quando chegaram, tia Rosa começou a cortar as ervas com a catana e, com a alavanca, abriu um pequeno buraco na terra, dizendo em voz alta: “Cresce com dedicação ao trabalho. Aprende a limpar a tua casa, a preparar a terra e a plantar o teu próprio alimento.”

De seguida, o tio Virgílio sentou-se com o bebé na esteira e, com grande delicadeza, passou as folhas sobre os olhos da criança, dizendo: “Lavo os teus olhos para que no futuro vejas tudo claramente.” Depois, pegou no anel e repetiu o gesto, pronunciando: “Lavo os teus olhos para que no futuro possas ver toda a tua família, sejas sábio e saibas observar o mundo à tua volta.”

Terminada esta fase, o tio abriu o caderno onde estavam escritos o nome completo e a data de nascimento do bebé, e murmurou-lhe ao ouvido: “O teu nome é Queinaya Viana de Aleixo. Este caderno e este lápis são para tu segurares, escreveres e estudares, para que tenhas pensamentos brilhantes.”

Ergueu então o bebé em direção ao sol nascente, para que recebesse a luz e a energia do novo dia. Após este gesto, tanto o tio como a tia esfregaram os próprios olhos com as folhas, a moeda e o anel, como sinal de proteção. Os restantes membros da família também repetiram o ritual, esfregando estes objetos nos olhos.

Um gesto ancestral para proteger e abençoar a criança

Os familiares presentes na cerimónia também devem lavar seus olhos para os proteger/Foto: Diligente

A cerimónia do Fase Matan é realizada desde tempos ancestrais. Costuma acontecer três dias ou uma semana após o nascimento. De acordo com a tradição, lavar os olhos do bebé evita que a sua visão se torne “cinzenta” e também assinala o momento em que a mãe pode voltar a usar água fria.

Além da cerimónia, a ocasião é também um momento de convívio comunitário. Familiares e vizinhos trazem ofertas práticas como sabonete, sabão em pó, fraldas e toalhas para dar as boas-vindas ao recém-nascido.

Afonso Aleixo Bareto, representante da família, explicou que o Fase Matan é uma prática para pedir matak malirin — a bênção natural — para que a criança cresça saudável. “Se não realizarmos esta prática, no futuro a criança poderá não compreender bem o mundo”, alertou.

A cerimónia deve ocorrer antes do nascer do sol, para que a criança aprenda a levantar-se cedo e desenvolver hábitos de responsabilidade. Afonso sublinhou ainda que todos os que assistiram ao parto — seja em casa ou no hospital — devem participar no ritual de lavar os olhos, como forma de proteger a própria visão.

Entre os materiais essenciais estão água retirada diretamente de uma nascente natural, para garantir frescura e pureza; folhas da planta ai lauk, conhecidas pela sua energia vitalizante; um anel ou uma moeda de dez centavos, símbolos de luz e proteção visual e materiais agrícolas e escolares, para orientar o bebé no trabalho e no estudo.

“O ai lauk cresce perto da nascente e é ele que dá vida à água, por isso consideramos que ele transmite essa energia vital ao desenvolvimento da criança”, explicou.

As mulheres realizam o ritual dentro da casa, simbolizando o trabalho doméstico, enquanto os homens realizam-no no exterior, representando o trabalho agrícola.

O cesto, a catana e a alavanca representam a ligação da criança à agricultura, enquanto o caderno e o lápis incentivam a sabedoria e o estudo. “Se estes materiais não acompanharem o bebé, ele poderá crescer com preguiça de trabalhar e estudar”, afirmou Afonso.

As diferentes práticas do Fase Matan em Timor

Tomás Alves Madeira, de Letefoho, Ermera, explicou que na sua comunidade o Fase Matan é sempre feito de madrugada, para que o bebé receba a bênção da luz das estrelas e do sol. O ritual inclui medir o bebé dos pés à cabeça — gesto simbólico para que a criança cresça saudável e alta — e passar uma moeda de dez centavos nos olhos do bebé.

“É necessário realizar o Fase Matan para que a criança possa receber a luz das estrelas e do sol, de modo a que os seus olhos fiquem claros e consigam ver tudo com nitidez”, destacou.

Tomás contou que, durante a cerimónia, os familiares colocam água num prato e adicionam uma moeda de dez centavos, que é depois colocada em frente à casa, juntamente com bua malus (noz de areca e betel, em português). “Pegamos numa moeda de 10 centavos para passar nos olhos do bebé, para que os seus olhos brilhem como a lua e as estrelas. E não é apenas para proteger os olhos do bebé, mas também para todos os familiares, para que ninguém fique com a visão cinzenta demasiado cedo”, explicou.

Disse ainda que, durante o processo, deve ser escolhida uma pessoa para realizar a medição do bebé, passando as mãos dos pés até à cabeça, com o objetivo de que, no futuro, a criança possa crescer com boa estatura. Após essa medição, a criança é levada para fora de casa para se realizar o ritual do Fase Matan, utilizando a água e a moeda que foram previamente colocadas no prato. “Depois, o bebé é erguido em direção ao nascer do sol, para que possa receber a força e a bênção da luz do dia”, explicou.

Tomás Madeira concordou que o Fase Matan é uma tradição feita para conceder matak malirin (bênção da natureza) ao bebé e que, ao mesmo tempo, serve como um ritual de libertação, permitindo que tanto o bebé como a mãe possam voltar a sair de casa e sentar-se ao ar livre.

João Rui Lemos, de Laclubar, Manatuto, descreveu o ritual como uma espécie de “batismo cultural”. Na sua tradição, além de lavar os olhos, a família entorna água sobre a moleira do bebé e anuncia-lhe oficialmente o nome, geralmente herdado dos avós. Caso o nome escolhido não seja o adequado (por exemplo, se o bebé chorar muito), a família procura outro nome dentro da linhagem familiar.

A pessoa que carrega o bebé: espelho do seu futuro

Os praticantes do Fase Matan acreditam que a pessoa que carrega o bebé durante o ritual influencia o seu caráter futuro. Por isso, a escolha é criteriosa. O homem torna-se o Aman Kous (“pai acolhido”) e a mulher, a Inan Kous (“mãe acolhida”).

Afonso explicou: “Se escolhermos alguém que não respeita os outros ou que tem maus comportamentos, a criança poderá crescer com essas mesmas características.”

“Se escolhermos uma pessoa que gosta de causar problemas, que não respeita os outros e age com arrogância, esse comportamento refletir-se-á na criança”, disse Afonso. Mencionou que essa situação aconteceu na sua própria família. “A minha filha, agora, fala muito, tal como a tia que a acolheu durante o Fase Matan“, afirmou.

Tomás Madeira acrescentou que, mais tarde, realiza-se outra cerimónia chamada Oidu (“trazer para fora”), na qual o bebé é levado para fora de casa com utensílios agrícolas e materiais escolares, reforçando a ligação entre trabalho e estudo.

Disse que a pessoa escolhida para carregar o bebé para fora de casa deve ter boas atitudes e conhecimento, pois, no futuro, esses comportamentos refletir-se-ão na criança à medida que crescer.

“Quando uma criança é traquina e as pessoas comentam que ela não respeita ninguém, as famílias perguntam logo aos pais: ‘Quem levou a criança para fora de casa durante o Fase matan?’ Se os pais indicarem uma pessoa conhecida por esse tipo de comportamento, então as famílias dizem: ‘É por isso que o comportamento do teu filho ou filha é igual ao dessa pessoa'”, explicou.

Um apelo urgente: preservar uma tradição em risco

Apesar da sua importância cultural, o Fase Matan está a desaparecer, sobretudo devido à modernização e às mudanças nos valores familiares. Afonso Aleixo explicou que, mesmo onde ainda se pratica o barlaque (casamento tradicional), a cerimónia já enfrenta dificuldades.

“Se a casa sagrada deixar de dar importância a estas práticas, a tradição poderá desaparecer. Podemos registá-las por escrito, mas a sua verdadeira força está na prática”, lamentou João Lemos.

Tomás Alves Madeira observou que, em Ermera, a tradição ainda resiste, mas nas famílias que se mudaram para Díli o ritual tem vindo a perder-se.

Todos apelam para que se continue a praticar e a investigar o Fase Matan, para que as gerações futuras possam conhecer e valorizar esta herança ancestral. “Precisamos que os estudantes pesquisem, registem e divulguem esta tradição, porque ela está seriamente ameaçada de desaparecer”, concluiu Tomás.

Entre a luz e a cegueira

Em Timor-Leste, a visão não é apenas física: é também um dom espiritual, um guia para a vida. O ritual do Fase Matan reflete esta conceção ancestral — lavar os olhos do recém-nascido para que ele possa ver o mundo com clareza, sabedoria e responsabilidade.

Este simbolismo ecoa também na literatura timorense, nomeadamente no romance Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo, de Luís Cardoso. A protagonista, Beatriz, nasce com olhos enormes e mágicos, mas é vendada para ser protegida das dores do mundo e por julgarem que ela padece de uma doença. Paradoxalmente, é ela, cega para o exterior, quem melhor compreende as verdades escondidas, enquanto aqueles que mantêm os olhos abertos permanecem presos à ignorância e à ilusão.

Tal como em Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, Luís Cardoso mostra-nos que ver fisicamente não significa necessariamente compreender. A verdadeira cegueira é espiritual: é não querer ver, é não querer saber. Em Timor, nas tradições como o Fase Matan, preserva-se o valor de ensinar a ver para além do imediato — de formar crianças capazes de interpretar o mundo com lucidez e compaixão.

Num país onde a visão representa tanto uma bênção como uma responsabilidade, os rituais e as histórias lembram-nos que, mais importante do que abrir os olhos, é aprender a ver. Como diria José Saramago, no seu Ensaio sobre a Cegueira,Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

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