Etson “Caminha” para a arte desde criança

Karau Dikur instrumento tradicional criado pelo próprio músico /Foto: Diligente

Começou a tocar e a cantar tão cedo que nem sequer houve tempo para pensar noutra profissão que não a que tem hoje: músico. Em pequeno, “fazia da vassoura viola e fingia que tocava”. Foi assim, meio “a brincar”, que começou um percurso “sério”, que trouxe ao mundo um artista multifacetado: Etson Caminha.

Ficámos de nos encontrar com o músico numa quarta-feira à tarde, na sua casa, em Kampug Baru, Díli. Ao chegar, o primeiro som que ouvimos não foi de nenhum instrumento musical, mas sim o ladrar sonoro do cão que, invariavelmente, faz soar o alarme “sempre que chegam visitas”, conta Etson com um sorriso no rosto, enquanto nos apresenta a sua mulher, Lena Caminha.

O cão, nervoso, apressou a nossa entrada na casa, que é, ao mesmo tempo, o seu local de trabalho e onde mora com a família. No primeiro andar, decorada por alguns instrumentos tradicionais e materiais de pintura espalhados na mesa, mostra-nos a sala onde costuma trabalhar.

Relaxado e sempre de bom-humor, Etson tem uma imagem fora do comum. Logo à primeira vista, chama a atenção, quando olhamos para o corpo todo tatuado. Muitas destas tatuagens são desenhos dos filhos que quis gravar no seu corpo. Os quase dois metros de rastas no cabelo também não passam despercebidos. Conta, com orgulho, que foi “a primeira pessoa com piercings no país, depois de Timor-Leste se tornar independente.”

Hoje, com 38 anos, as atuações já foram muitas mais do que alguma vez imaginou quando, ainda em criança, começou a fazer da vassoura a sua guitarra. Atua regularmente na Austrália, já teve também possibilidade de levar a sua música a Portugal e a outros países como Itália, Tailândia, Singapura e Camboja. Em Díli, também não faltam oportunidades para o ouvir.

A agenda preenchida não faz com que deixe de lamentar que, em Timor-Leste, “um músico ainda não seja devidamente remunerado”. Apesar de o orgulho com que conta levar uma vida tranquila na casa paga com o dinheiro que ganhou com a sua arte, tem consciência de que não tem um salário mensal garantido: “A minha mulher escreve guiões e faz teatro, eu faço música ou outros projetos, mas tudo depende dos contratos”, desabafa, referindo-se à instabilidade da vida dos artistas timorenses.

Vida fora dos palcos e o regresso à infância

Etson Caminha nasceu no seio de uma família muito humilde de Lospalos, município de Lautém. É o segundo filho de 11 irmãos.

Quando era criança, gostava muito de brincar com tudo o que encontrava por casa. Tudo o que permitisse criar algum som era um brinquedo divertido: tachos, panelas, vassouras são só alguns exemplos.

Outra das diversões acontecia na altura das plantações de arroz. “Íamos à várzea para impedir os passarinhos de comer e destruir a plantação. Ficávamos lá até muito tarde. Os passarinhos nunca apareciam ao meio-dia, talvez por causa do calor, então aproveitávamos essa hora para brincar. Levávamos alumínio e paus, subíamos a uma barraca e eu tocava com a minha vassoura. Saltitávamos de um lado para outro e fazíamos muito barulho. Era um grande concerto até chegar a minha avó para nos lançar pedras, furiosa por causa do barulho”. Nesse momento, todos saíam a correr do “palco” improvisado. “Era muito divertido”, conta de sorriso rasgado , ao mesmo tempo que recorda os tempos de criança.

Lembra que, naquela época, não tinha muito com o que brincar, por isso, usava a sua criatividade para se divertir. Uma das técnicas era usar contraplacados em que colocava elásticos que faziam as vezes das cordas da guitarra. Quando percebia que a sua “invenção” produzia som, começava a tocar e a cantar.

As brincadeiras simples de infância mostravam claramente o desejo, que mais tarde, viria a concretizar: ser músico, ser artista.

Aprendeu os primeiros acordes de guitarra com um amigo. A partir daí, começou a praticar numa viola emprestada. Para Etson, “não importa como se consegue fazer aquilo que desejamos, o mais importante é sempre começar, nunca desistir”. O músico considera que “a arte é não ter medo de criar a sua própria história, independentemente do contexto social onde nascemos ou vivemos”.

Hoje é músico, pintor, tatuador, organizador de festivais, marido e pai.

Etson Caminha cria sons a partir de múltiplos objetos/Foto: DR

Mudou-se de Lospalos para Díli em 2002. Nos primeiros tempos, teve de saltar de casa em casa, e contou com a ajuda de amigos e familiares, que lhe deram apoio nos primeiros tempos pela capital. Ao mesmo tempo, ia participando em eventos para mostrar o seu trabalho e ganhar algum dinheiro.

Casou com Lena Caminha, com quem vive, também em Díli, há 15 anos. Conheceram-se na Arte Moris (escola de artes plásticas, centro cultural e associação de artistas em Timor-Leste), onde a esposa faz teatro. “O nosso amor nasceu lá”, recorda Etson com carinho.

Desse amor já nasceram dois filhos gémeos, Abigi e Dedon, agora com 12 anos, e uma menina, Abiden, de 6. Os dias deste “pai artista” repartem-se entre as artes, levar e trazer os filhos para e da escola e dedicar-lhes tempo de qualidade. “Gosto de tocar e pintar com os meus filhos”.

A mulher conta, com olhar apaixonado, que o que mais chamou a sua atenção no companheiro foi a “forma de ser autêntica”. Fascina-a também o facto de o marido “gostar de ajudar as pessoas”, de vê-lo a estender a mão “sempre que encontra alguém pelas ruas com algum problema ou necessidade”.

Etson e Lena são dois artistas a viver juntos e, para ela, a realidade dos dois “é a melhor coisa de sempre. Ele compreende-me bem e eu a ele”.

A primeira de muitas atuações

Começou por atuar na igreja, em 2001, por volta dos seus 16 anos, no dia de D. Bosco. “O meu amigo Ato perguntou-me se sabia cantar alguma música, porque estavam a precisar de alguém naquele momento. Respondi logo que sim. Foi a primeira vez que toquei num palco. Senti um nervosismo inexplicável. Cantei a música “Domim recordação” e “Nobel dame”, de Quito Belo. Foi um sucesso.”

A partir daí, formou-se um grupo no qual passou a atuar em diferentes celebrações da Igreja. E foi assim que nasceu a sua primeira banda: EDLLEWIS, formada por Etson, Leni, Leo, Wilson e Sertório.

“Fomos especiais na paróquia São Pedro São Paulo, em Lospalos, apesar de a nossa aparência não convencer muitas pessoas. A sociedade pensava que éramos bandidos, mas não nos importámos. Devemos ser nós mesmos, porque os outros já existem”, lembra o músico, referindo-se às rastas, piercings ou roupas largas que causavam alguma estranheza na comunidade.

Algum tempo depois, o seu irmão, Yajalde Caminha, propôs que ele se juntasse a uma outra banda de que fazia parte, os Galaxy, grupo fundado por Osmem Gonçalves. Acabou por integrar o grupo, que, na altura, atuava pelas igrejas e festas do município e que hoje é das bandas com mais sucesso do país.

“Consegui através da minha criatividade”

As limitações económicas que teve de enfrentar desde pequeno nunca impediram o artista de correr atrás do seu sonho e conseguir instrumentos musicais para treinar e aprender. Recorda que, a determinada altura, “quis comprar uma guitarra street (modelo de guitarra elétrica), mas não tinha dinheiro. A guitarra custava 15 dólares e eu só tinha cinco. Como tinha uma outra viola, decidi modificá-la e, sem dinheiro, consegui criar um instrumento que de outra forma não conseguiria ter”, lembra com orgulho.

Em 2002, ingressou no grupo Arte Moris. Tudo aconteceu num dia em que decidiu ir visitar o espaço, em Comoro, e um colega lhe ofereceu uma tela para pintar. Quando terminou, o fundador da Arte Moris ficou espantado com a sua criatividade. O seu primeiro quadro foi parar a uma exposição na Suíça.

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Trabalhos de pintura de Etson Caminha /Foto: Diligente

Em 2007, conheceu a percussão através do Nelson Turquel, também músico percussionista. No início, confessa que estranhou, mas depois começou a gostar muito. “Consegui encontrar 4 ou 5 ritmos só através de um bidão. É um som único”, sublinha.

Ao longo do seu percurso, destaca três fases. Primeiro, o trabalho desenvolvido com a banda Galaxy, onde usavam instrumentos modernos. Uma segunda fase, quando conheceu a percussão. E uma terceira, mais atual, quando começou a interessar-se por instrumentos tradicionais e as suas origens.

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Instrumentos tradicionais: Karau Dikur e do lado direito Lakadou, feito de bambu/ Foto: DR

Foi a partir daí que se questionou: “Qual é a verdadeira música? Qual é o verdadeiro som?”. Decidiu viajar até ao passado, procurar a origem dos instrumentos. Em vez de começar a tocar lakadou, instrumento tradicional timorense, foi procurar a sua origem e descobriu que é feito de bambu. Hoje, conta que, em vez de tocar o lakadou, toca bambu. “O som original é isto. É o meu som. Eu faço e crio o meu próprio som através da natureza”, partilha o músico.

Etson entende a música de uma forma muito própria, que não está dependente daquilo “que a sociedade gosta ou aprova: Eu vou fazer as coisas que eu gosto e amo. Eu crio o meu próprio caminho”.

O regresso às origens

“O mundo já conhece muitas formas de arte, e, para sermos capazes de criar uma coisa única, temos de voltar às nossas raízes, conhecermo-nos para descobrirmos o que queremos neste mundo”.

Etson Caminha sempre procurou incessantemente o seu próprio som, o seu “eu” perdido, mas foi um caminho longo, uma verdade difícil de encontrar”. Sempre que ia tocar a algum sítio e via outros colegas a atuar, outros músicos com uma identidade musical própria, questionava-se: “Quando vou ser como eles?”.

Todas as noites, acendia uma vela como que a pedir inspiração para criar um som único, para encontrar uma sonoridade só sua. Era nesses momentos que Etson dava vida ao seu dom e criava sons com todos os objetos que o rodeavam. À volta dele, muitos se queixavam. Onde Etson via arte e ouvia música, outros ouviam barulho.

Foi assim que nasceu o NOISE, projeto de música experimental, que Etson Caminha fundou em 2017.

“Algumas pessoas não gostavam, porque consideravam que era apenas barulho e agitação. Antes, dava muita importância aos comentários das pessoas”. Hoje, já não liga ao que as pessoas dizem e pensam. Ao longo do seu caminho enquanto músico, começou a desenvolver a sua personalidade artística e hoje tem um vínculo muito forte com o seu som.

O NOISE é “a minha forma de expressão, de dizer o que está escondido há muito tempo, através do meu som”, um som que o público nunca tinha pensado encarar como criação artística em vez de ruído. “Eu crio as coisas não por beleza, mas porque procuro coisas que ainda não existem e dou-lhes vida”.

O primeiro NOISE aconteceu em 2018, com um caixão. Vestiu-se de preto e abraçou o lakadou. A mensagem que quis passar foi que “as pessoas podem morrer, mas os instrumentos não”.

Uma das maiores preocupações relativamente à arte e à cultura é, para Etson, “estarmos a perder a nossa origem, algo afetuoso, que tem o poder de nos diferenciar de outras culturas e países. E esta perda pode resultar num conflito de identidade”.

Para Etson, tudo à sua volta é música. “O chilrear dos passarinhos é música, o vento é música, tudo na natureza é música. Eu toco com terra, toco com pedras, toco com os troncos das árvores. A música está comigo a toda a hora e a todo o momento”.

A morte é o seu maior medo. Não no sentido do fim da existência, mas sim o medo de “desaparecer cedo demais sem transmitir tudo o que quer às novas gerações e não haver ninguém que continue a querer estudar e a divulgar a verdadeira cultura”.

No futuro, o músico quer criar um centro de pesquisa focado nos instrumentos tradicionais de cada município, com o objetivo de preservar a cultura timorense.

(Acontece, este sábado, na Fundação Oriente, “Lupur- Noise X”, o décimo espetáculo do Noise Timor, o projeto experimental de arte sonora, fundado em 2017 por Etson Caminha, que assina a conceção e direção da performance. Reúne projeção, instalação, pintura ao vivo, performance teatral, música e canto coral, entre as 20h e as 22h).

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