Um dia e três exames bastam para tirar carta de condução em Timor-Leste

Exame prático de condução em Hera/Foto: Diligente

A confusão reina na Direção Nacional de Transportes Terrestres (DNTT), em Hera, onde o Diligente acompanhou, nos dias 21 e 23 de fevereiro, as várias etapas do processo para obter a carta de condução. E se na estrada há dias mais caóticos do que outros, na DNTT todos os dias são de caos e “engarrafamentos”, com cerca de 80 pessoas por dia a recorrerem a estes serviços, que não conseguem dar resposta de forma eficaz e segura a todos os processos.

“Não inventes um caminho novo, segue o percurso que os teus colegas já fizeram” são as expressões que se ouvem, em tom de troça, vindas dos próprios funcionários da DNTT e dos outros elementos do grupo que assistem ao exame prático de condução enquanto esperam pela sua vez de fazer o teste. Muito provavelmente, serão alvo das mesmas palavras de desincentivo ou outras parecidas.

Enquanto os que fazem o exame prático se enganam por não saberem como contornar os obstáculos improvisados sem esbarrar nos pneus, como mandam as regras para serem bem-sucedidos, outros vociferam em tétum, “o la hatene nee, dalan nee” (que significa “tu não sabes estes percursos”). Outros aconselham os que estão à espera para aproveitarem o tempo morto para verem exemplos no Youtube deste género de exames com obstáculos. Os conselhos e dicas são muitos e diferentes, mas a realidade é invariavelmente só uma: nenhum dos avaliados teve uma única aula que permitisse agora conseguir passar no teste, com menos dificuldades.

No mesmo dia em que fazem o teste de condução, já tiveram de realizar, da parte da manhã, os testes teóricos (escrito e oral). Para esses testes também não houve nenhuma aula de preparação. As provas escritas têm 55 perguntas e cada candidato tem de acertar 36 para passar à próxima fase. Para os que passam no teste escrito, a fase seguinte é o teste oral, onde o teor das perguntas é idêntico às do teste escrito, mas sem um número definido, depende do funcionário que estiver encarregado de conduzir esta fase do processo. Caso não passem esta segunda etapa, não poderão realizar o exame prático de condução para motas e carros.

Os funcionários da DNTT avaliam os candidatos de acordo com os três testes, se não atingirem os objetivos mínimos, terão de repetir o exame. Para fazerem estas três avaliações, cada candidato tem de desembolsar 15 dólares, que dá direito a várias tentativas, cujo número exato não foi possível apurar. A DNTT pede ainda dois atestados médicos, oftalmológico e de audição.

“Eu nunca frequentei nenhuma formação nem tive aulas de condução. Entrei na sala da DNTT e um funcionário entregou-me de imediato o teste. Tive dúvidas sobre os sinais de trânsito, mas tentei preencher de acordo com o que sei”, adianta um condutor de microlete (transporte público) que não quer ser identificado.

Mesmo assim, conseguiu passar, “sem cunhas: fiz tudo à sorte, não conheço ninguém que trabalhe aqui, nem tive aulas para aprender as regras de trânsito”. No mínimo, os funcionários da DNTT deveriam “explicar o código da estrada, dar-nos algumas explicações, mas não. Em vez de nos apoiarem, só dificultam”, lamenta.

“Alguns testes escritos são de escolha múltipla e, muitas vezes, os testes antigos são reutilizados e conseguimos ver as respostas dadas, a lápis, pelas pessoas que responderam antes”, mas sem saber “se estão certas ou erradas”, na verdade. “Passamos no teste, mas não percebemos as regras de trânsito”, diz com revolta contra um sistema que não promove a aprendizagem.

Já Zeferino de Jesus Lopes, condutor de mota e funcionário do Ministério da Educação de Manufahi, contou ao Diligente que obteve a carta de condução, porque aprendeu o código da estrada numa campanha de informação sobre regras de trânsito, realizada pela Unidade de Trânsito da Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), no seu município. No entanto, estas ações dirigidas a todos os interessados em obter o título não acontecem com regularidade.

Teve também de realizar os três testes: escrito, oral e prático e realça que sempre foi “muito atento aos sinais de trânsito”. Além disso, contou também com a ajuda de um colega que lhe emprestou o código da estrada para estudar, para além de ter “aprofundado os conhecimentos através do google”. No que depender da DNTT, “eles só querem que façamos o teste e mais nada”.

O Chefe do Departamento Carta de Condução da DNTT, João Maria Belo Ximenes, admite que os condutores não frequentam nenhuma formação, nem teórica nem prática. “Já falei com o diretor da DNTT sobre este problema, mas não existe ainda um plano de formação, porque é necessário um grande investimento”.

“A falta de um local apropriado, de materiais e de recursos humanos especializados também impedem a formação. Os condutores apenas fazem os exames” e, normalmente, conseguem passar, porque a DNTT entrega, no dia anterior ou no próprio dia do teste, meia dúzia de fotocópias com informação geral das regras de trânsito.

O chefe de departamento pede, inclusivamente, aos órgãos de comunicação social que continuem a escrever sobre este assunto, uma vez que “as aulas de código e de condução são mesmo necessárias, e é preciso alertar para esta situação”. Acontece regularmente “tirarem a carta de condução em três dias ou numa semana sem conhecerem bem as regras. Por isso, é necessário divulgar estas lacunas para que o Estado contribua, no sentido da DNTT poder oferecer a formação necessária aos futuros condutores”, sublinha.

Segundo o Comandante de trânsito do Comando da PNTL, Domingos Gama, os condutores que conduzem sem carta desrespeitam o Código Penal. “Um condutor que dirige sem carta não está a cometer uma infração, mas sim um crime”.

De acordo com o Código Penal de Timor-Leste, “quem utilizar veículo motorizado sem para tal estar habilitado com a licença legalmente exigida, é punido com pena de prisão até 2 anos ou multa”. A pena é fixada “no mínimo de 10 e no máximo de 360 dias” e “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre meio dólar e 200 dólares americanos, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado”, pode ler-se no artigo 75.º do mesmo código.

Acontece que o que está definido legalmente é facilmente contornado por condutores e autoridades oficiais. O Diligente teve acesso ao relato de um condutor que foi mandado parar devido a uma infração de trânsito (conduzia em sentido contrário) e a quem os agentes da PNTL não pediram que apresentasse a carta de condução. Limitaram-se antes a sugerir que o condutor pagasse 20 dólares diretamente aos polícias, porque “ficaria mais barato do que pagar os 30 dólares de multa” a que obrigaria a lei por esta infração e que obrigaria ainda o condutor a uma deslocação ao banco para efetuar o pagamento.

Domingos Gama concorda que, em Timor-Leste, é muito fácil obter a carta de condução, mas a maioria dos condutores oficialmente habilitados não entende o código da estrada, devido à falta de formação adequada. Assim, recomenda que a DNTT proporcione aulas para os futuros condutores.

“No mínimo, um condutor deve frequentar aulas durante seis meses para obter a carta de condução. Porém, aqui, muitas vezes, basta entregar documentos, fazer os testes e em dois ou três dias já se tem a carta. Este procedimento faz com que os condutores obtenham facilmente este documento, mas sem terem efetivamente os conhecimentos necessários sobre o código da estrada”. O comandante de trânsito realça que esta realidade pode causar “diversos problemas no trânsito, como engarrafamentos e acidentes”.

Dados da Unidade de Trânsito da PNTL a que o Diligente teve acesso referem que, dos 66 acidentes registados em janeiro deste ano, 38 condutores conduziam sem carta de condução.

Demora e filas de espera no atendimento na DNTT

Na DNTT, são longas as filas e as horas de espera para obter a carta de condução/Foto: Diligente

Na sala de receção da DNTT, destacam-se vários grupos. Uns esperam ouvir o seu nome para fazerem os testes escritos e orais, outros aguardam a sua vez para realizarem o exame de condução e outros tantos aguardam sentados nas cadeiras ou no chão, confusos e cansados, mas de ouvidos atentos, ansiosos para escutarem os seus nomes para poderem levantar o documento provisório ou o título oficial.

“Cheguei muito cedo e recebi uma senha com o número menor. Esperei, mas não me chamaram. Os outros chegaram tarde e já foram chamados pelos funcionários e eu tenho de esperar até às 14h00, porque agora já é hora do almoço”, queixa-se o condutor de microlete.

Por sua vez, Quito Reis, funcionário da Auditoria da Câmara de Contas, condutor de um veículo ligeiro, contou ao Diligente que foi a Hera só para renovar a carta e pensou que fosse rápido, mas o tempo todo a que já está à espera mostra-lhe que não. “Cheguei cá hoje de manhã, quando a porta ainda estava fechada, eram 7h da manhã. As outras pessoas que chegaram à mesma hora já foram embora, mas eu ainda aqui estou e não entendo o motivo desta demora”, lamenta o condutor, que estava a tratar da renovação da carta desde novembro do ano passado.

Só no passado mês de fevereiro conseguiu, finalmente, receber o título de condução com validade de dois anos, título que terá de renovar no final desse mesmo prazo, através do pagamento de 20 dólares. Após o pagamento terá direito a um novo título, desta feita com validade de cinco anos.

“Entreguei todos os documentos solicitados, mas não sei porque ainda não me chamaram, esta demora prejudica muito o meu trabalho. Pedi licença de manhã para tratar da renovação da carta, mas estão a demorar muito tempo. Para além disso, não chamam de acordo com o número da senha que entregam”, queixou-se Quito.

Mesmo com tanto tempo de espera, por vezes, os títulos de condução chegam com erros, como, por exemplo, onde deveria constar o grupo sanguíneo do condutor, estar escrito que o condutor “usa óculos”.

Para obter carta de condução em Timor-Leste não é necessário frequentar aulas de código ou práticas, basta memorizar algumas regras dadas no próprio dia do exame ou no dia anterior e esperar alguma dose de sorte. Se quiserem aprender e apresentar-se aos exames mais bem preparados, os condutores terão de consultar a internet ou aproveitarem as ações de formação orientadas pela Unidade de Trânsito da PNTL nos municípios, o que também não é obrigatório.

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