“Elites usam o poder para aceder a recursos de Timor-Leste e acumulá-los em benefício próprio”, diz ativista da Aliança Maubere

Miguel Monsil questiona as decisões do Governo sobre a alocação de recursos públicos/Foto: DR

Organização foca-se na educação política do povo como instrumento de mudança social.

Após as manifestações em frente ao Parlamento Nacional com outros jovens, em novembro do ano passado, Miguel Arcanjo Moniz da Silva (Miguel Monsil), 29 anos, esteve sujeito a apresentar-se periodicamente às autoridades. A medida de coação que lhe aplicaram, contudo, não o intimida a denunciar os privilégios das elites timorenses e a lutar por mais investimento na educação e saúde. Graduado em Química pela Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), o jovem considera que as atividades fora da academia formaram o seu espírito crítico. Está envolvido com a Aliança Maubere Nacional (AMN), uma organização extraparlamentar e apartidária, criada por quatro organizações: Organização da Ação Nacional, Klibur Estudante Progressivo, Comité Esperança e Sindicato dos Trabalhadores para a Libertação Nacional. A AMN pretende ser uma força que se opõe às decisões políticas que prejudicam a população. Foi a partir das mobilizações da AMN que os deputados, pressionados, desistiram da proposta de gastar quase 2 milhões de dólares americanos na aquisição de novos veículos e computadores. “Queremos que as pessoas questionem as decisões, leis e políticas do Governo”, destaca Monsil.

Timor-Leste é um país democrático desde a independência. Como avalia a democracia timorense?

A democracia em Timor-Leste é de uma minoria, de um pequeno grupo que controla o país. Por exemplo, nas eleições, os candidatos não são propostos pelo povo, mas por uma elite. Colocam “tigres” e “lobos” à frente do povo para que ele escolha. O caminho para a participação pública na tomada de decisão política é a manifestação. A soberania política devia estar na mão da população. A manifestação deve acontecer quando o representante do povo, o Parlamento Nacional, não faz bem o seu trabalho de controlo, o que resulta na falha dos ministérios. Os partidos políticos em Timor-Leste não se preocupam com o interesse público. Só as elites beneficiam. Queremos que as pessoas questionem as decisões, leis e políticas do Governo.

Quais são diferenças entre o Timor-Leste pré e pós-independente?

No mundo, há sempre conflitos por causa dos recursos e sobrevivência. A diferença em Timor-Leste é que antes o conflito era entre timorenses contra os que vinham de fora. Agora, a luta é entre classes, elites políticas e o povo. Nós estamos contra nós próprios. As elites usam o poder para aceder a recursos de Timor-Leste e acumulá-los para benefício próprio, enquanto a população ainda vive na miséria. É difícil falar no interesse nacional numa sociedade com classes, ricos e pobres, elite política e povo. Diversos interesses, diferentes políticas. Antes, Timor-Leste era dominado de forma repressiva. Agora, o domínio é feito com leis, educação e hegemonia cultural.

Por que razão a maioria dos timorenses não se manifesta contra as políticas que põem em risco a economia do país e os seus direitos?

Vemos que o povo timorense está a viver numa hegemonia cultural. Vive entre ideias dominantes. Quando temos dois partidos influentes, qualquer pessoa sem partido vai afiliar-se num deles. O Governo timorense ainda vive no tempo de Suharto. Considera que as pessoas que o criticam pertencem a milícias. A palavra ‘milícia’ vai condicionar o conhecimento das pessoas.

Como vê a liberdade de expressão em contexto de democracia?

O Governo cria órgãos que controlam os media para não contrariarem o próprio Governo. O Estado serve de instrumento para as elites políticas continuarem a mentir, a tornarem o povo ignorante para poderem roubar sem queixas.

Como se pode combater a injustiça e conseguir mudanças?

Através da força popular. Reforçar o povo através da educação política para conseguir uma mudança social. Não confiamos na força do indivíduo. Procuramos consciencializar e unificar o povo para que tenha conhecimento de política e consiga mudar a estrutura social. O povo devia controlar e erradicar as classes em Timor-Leste. Quase 5 mil timorenses controlam 1,3 milhões de habitantes. Quantitativamente, o povo é a maioria, mas está disperso por vários bolsos: os partidos políticos. Devemos reunificar o povo para controlar a elite em Timor-Leste. É uma longa luta. É preciso ter pensamento crítico. Os grupos marginalizados vão ser o público-alvo, os trabalhadores, camponeses, os pobres que não conseguem sobreviver em Díli, a que chamamos vítimas do desenvolvimento nacional, e estudantes, porque o sistema educativo em Timor-Leste não conseguiu transmitir pensamento crítico.

A educação não contribui então para combater a injustiça social no país?

De forma nenhuma. Estudar apenas na UNTL, sem participar em outras atividades, não permite desenvolver o espírito crítico. O que sou agora não o devo ao facto de ter estudado na UNTL, mas a outras atividades em que participei. Algumas escolas são do Governo, a favor aos políticos. Na UNTL, os docentes disputam o poder. O exame da minha proposta devia ter sido em 2019, mas só aconteceu em 2020, depois do protesto. Fomos muitas vezes intimidados. Um dia, um docente ameaçou-me: ‘Ainda bem que não tirou Medicina, porque lhe garanto que não se iria graduar’. Deu exemplo dos estudantes que não se licenciaram por terem participado em manifestações. Não me deixei intimidar. Licenciei-me em 8 anos.

Como tem sido tratado o interesse público pelo Governo no país?

Há duas forças importantes em Timor-Leste: a elite económica e elite política. Os partidos fazem campanhas com dinheiro que vem da elite económica. Por exemplo, o Governo forçou pelo menos 200 pequenos empresários com estabelecimentos no bairro de Kampung-Alor a se mudarem para o centro comercial de Golgota e a terem de pagar arrendamentos mais caros ao único proprietário do espaço privado. Esta concentração do capital intensifica o fosso entre classes sociais. O Governo faz negócios para benefício próprio e interesse das elites políticas e económicas. O interesse público está em último lugar.

Como vê então a alocação orçamental desde a independência até agora?

A economia de Timor-Leste é de cima para baixo, de macro para micro. A alocação orçamental nunca mostra preocupação com os setores relacionados com a prosperidade do povo. O baixo investimento na agricultura, por exemplo, diminui a capacidade de produção, o que obriga a importar 90% do arroz consumido em Timor-Leste. A falta de incentivo aos agricultores resulta numa taxa elevada de má nutrição: 41% das crianças. Na educação, a prestação da maioria das escolas pública é inferior às escolas privadas.

Fala em corrupção legal. O que é isto e como a combater?

A corrupção tem o objetivo de mudar as decisões públicas. Corrupção legal é quando uma pessoa usa o seu poder para influenciar decisões do Estado e produzir leis a favor dos seus interesses. Por exemplo, o código laboral estabelece como salário mínimo 115 dólares. Isto interessa a quem? A pensão vitalícia permite aos governantes aproveitar os recursos depois do mandato dentro da lei. É legal, mas não é justo. Algumas leis são criadas pelas elites, que se preocupam apenas com as suas necessidades. Como combater este problema? Força popular! As leis não podem surgir de repente sem a participação pública. As leis devem ser apresentadas ao povo, em forma de esboço, e discutidas. Assim, sabemos se as leis são justas.

Por que razão é que decidiram organizar a manifestação do ano passado?

Foi o momento certo para falar dos assuntos que ninguém fala: a lei da pensão vitalícia, lei da liberdade de manifestação e a compra de veículos para os deputados. A lei da pensão vitalícia é uma forma de os deputados se separarem do povo, de irem para outro nível da sociedade, criando classes sociais. A lei da liberdade de manifestação impossibilita o povo de exercer a sua soberania. Outros assuntos foram o trabalho do Parlamento Nacional como representante do povo, a enorme diferença salarial entre o povo e os deputados, que ganham 14 vezes mais do salário mínimo.

Qual foi a reação dos membros do Parlamento Nacional?

O PN só teve em consideração a questão da lei da pensão vitalícia, mas ninguém quer começar a mudança, culpando-se uns aos outros sobre o surgimento desta lei. Não há vontade de resolver. Sobre os carros, o presidente do PN, Aniceto Guterres, disse que quer atribuir subsídios de transporte para não ser necessário comprar carros. Porém, durante o debate na TVE, referiu que ia comprar na mesma. Então, sugerimos que comprassem, mas fizessem leilão a cada 5 períodos. Rejeitou a ideia. Por isso, as declarações na manifestação são tentativas de truques públicos. Na verdade, os 1,9 milhões vão ser canalizados para outros itens do Parlamento. Há a possibilidade de que, na sexta legislatura, este dinheiro seja recolocado para comprar carros através da proposta de transferência pública.

No âmbito da manifestação, foi detido. O que aconteceu?

No dia 16 de novembro, a PNTL bloqueou o espaço da UNTL para revistar todos os universitários e proibi-los de se sentarem no jardim. Decidimos ir para o Liceu. Encontrámos o Batalhão da Ordem Pública (BOP) no Museu da Resistência e dialogámos. A polícia disse que não tinha conhecimento da lei e, por isso, não tinha competência para decidir se a manifestação poderia continuar. Quisemos falar com o chefe-comandante, mas não conseguimos. Com a nossa chegada ao museu, a polícia avisou com altifalante para recuarmos. Então caminhámos até ao Benfica. O comandante da polícia da esquadra de Vera Cruz, o Sr. Daniel Freitas, repetiu o que já tinha sido dito. Pedi falar com o comandante de operações do município de Díli e dialogámos. Quando tirei o meu telemóvel para discutirmos sobre a lei, o comandante orientou os membros para me deterem. Ninguém reagiu. Dois comandantes detiveram-me com muita força. Eu perguntei que crime estava a cometer, mas não responderam. Desafiei-os para ir a Tribunal. Levaram-me para esquadra de Vera Cruz. Dez amigos meus também foram detidos e dois deles foram agredidos. Pisaram-nos e atiraram-nos para o carro. Depois de 50 horas na cela, interrogaram-nos. Acusaram-nos do crime de desobediência, crime de dano agravado, porque a porta da UNTL foi partida, e crime de perturbação da ordem pública. Conseguimos isentar-nos do primeiro crime, porque não avisaram para dispersarmos. Quanto ao segundo, não há provas de que fomos nós que partimos a porta. Relativamente ao terceiro crime, foi a polícia que bloqueou o caminho. Agora, o processo foi encaminhado para Tribunal. Nos dias 7 a 9 de novembro, não houve problemas. No dia 11, começaram os confrontos entre a polícia e os manifestantes, porque, no dia 9, o Parlamento Nacional e o Reitor fizeram declarações a dizer que a manifestação era ilegal. A detenção baseou-se nisto, mas nós demos conhecimento da manifestação, tal como está previsto na lei. Entregámos a carta de conhecimento à polícia a 28 de outubro, com base na lei no. 1/2006 artigo 10.º. A PNTL respondeu à carta só a 4 de novembro, o que não é legal, porque deveria tê-lo feito no prazo de dois dias. O nosso aviso prévio para fazer a manifestação em frente do Parlamento Nacional é válido e legal. Na carta de resposta, a polícia pediu que retirássemos e entregássemos novamente a carta ao comando geral da PNTL. Não aceitámos, porque a lei refere que o aviso prévio deve ser entregue à polícia da área.

Monsil no momento em que foi detido na manifestação em frente ao Parlamento Nacional, decorrida em novembro do ano passado: “Perguntei que crime estava a cometer, mas não responderam”/Foto: DR

Qual é a sua opinião sobre a atuação da PNTL nesta situação?

A reação da PNTL foi exagerada. Seis polícias a usarem força contra um manifestante que não resistiu é impensável. Não fizemos queixa de abuso de poder, porque a estrutura da AMN estava ocupada com os media.

Alguns deficientes visuais também foram detidos. O que pensa sobre isto?

Deu uma má imagem da democracia timorense. Vimos que os polícias não têm conhecimento da lei. Foram influenciados pelos políticos. A detenção foi orientada pelo Parlamento Nacional e por Taur Matan Ruak.

O Reitor da UNTL era contra a manifestação?

O Reitor não consegue liderar a universidade e cumprir a sua função. Uma universidade deve ser um lugar de procura da verdade e defesa da justiça. Se sabemos que há injustiças, devemos reivindicar. Há três pilares académicos: estudo, pesquisa e controlo social.

Sobre o caso de pedofilia do Bispo Dom Ximenes Belo, muito discutido recentemente, foram vários os políticos que se manifestaram em sua defesa, inclusivamente o Presidente da República, que disse que o Bispo seria bem-vindo em Timor-Leste. O que pensa sobre esta situação?

É uma situação grave. Há dois fatores pelos quais os políticos não falam: por serem iguais aos pedófilos ou por terem medo da Igreja. A Igreja em Timor-Leste tem um papel muito importante. Os políticos são medrosos. Nem Xanana vai contradizer a Igreja. Têm medo de perder o poder, medo de perder votos, medo do povo. Uma forma de manter o apoio da Igreja é não a contradizer. A outra é dar dinheiro: 4,5 milhões para a Igreja. No fim do ano, ninguém tem coragem para fiscalizar a execução do dinheiro sem relatório. O Parlamento Nacional também nunca discutiu o orçamento para a Igreja. A figura atrás da Igreja é o povo. Nós é que lhe atribuímos força e privilégio. Em 2006, a Igreja conseguiu derrotar Mari Alkatiri, porque ele queria que a disciplina de Religião Moral e Católica deixasse de ser obrigatória por Timor-Leste ser um Estado laico.

A Igreja tem peso no Estado. A Ministra da Saúde também mandou riscar a expressão ‘use preservativo’ de cartazes de combate ao HIV Sida, alegando que é contra o ensinamento da Igreja e incentiva o “sexo livre”. O que pensa sobre isto?

Politicamente, a Igreja tem muita força. Como mudar? Deve ser o povo. Esperemos ter um sacerdote progressista, com teologia libertadora, como Gustavo Gutiérrez e Frei Betto do Brasil. Aqui temos as congregações dominicana e franciscana, que são progressistas, não conservadoras. A teologia libertadora pode construir pensamento crítico e livrar o povo da hegemonia cultural. Devíamos ter um partido político progressista, criado e controlado pelo povo. Se todas as pessoas falarem, o povo fala. A maioria deve abrir a boca e exigir os seus direitos.

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  1. Alguém com coragem de dizer tudo. Devia haver mais jovens timorenses como o Miguel. Infelizmente, são uma minoria. Obrigado Diligente por terem a coragem de dar voz a jovens com coragem.

  2. 2016?
    Se o entrevistado falou em tétum, “padre” ou “sacerdote” seria uma tradução muito mais apropriada de “amo”.
    Faltaram uma ou duas perguntas sobre se “a sociedade sem classes” etc significa que eles são uma organização de ideologia marxista-leninista e se eles defendem ou não o sistema de eleições multipartidárias, mas, no geral, parabéns! TL estava a precisar de um órgão de comunicação social que fizesse boas entrevistas, assim, sem medo de perguntar sobre assuntos polémicos e de explorar a fundo os assuntos. Idealmente haveria no futuro também entrevistas com representantes da Igreja, da Polícia, Parlamento, etc, nas quais fossem feitas algumas destas perguntas.

  3. JP, também acho que “padre” evitaria eventuais ambiguidades, mas já ouvi vários timorenses com um bom nível de português a usar “amo”. Não se trata de um erro de interlíngua. É usado intencionalmente. Na verdade, no dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, uma das aceções de “amo” é “padre católico”, em Timor-Leste.

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